sábado, 19 de outubro de 2013

RT Comenta: DIREITO PENAL

 
Prova: Juiz Federal TRF5 (2012)
Tipo: Objetiva
Banca:
Hoje decidi comentar uma questão anulada. O leitor pode se questionar qual a finalidade disso, ao que eu responderia com a afirmação de que a compreensão dos motivos conducentes da anulação pela banca constituem grande aprendizado, inda mais porque versam sobre a jurisprudência dos tribunais superiores acerca da aplicação do princípio da insignificância nos crimes contra a Administração Pública. É o que veremos a seguir. 
QUESTÃO 18

No que concerne à teoria do crime, assinale a opção correta.

(A) Em direito penal, entende-se a tentativa como uma forma de adequação típica de subordinação imediata ou direta.

(B) O princípio da insignificância incide nos crimes contra a administração pública, o que exclui a tipicidade, mesmo que a conduta praticada ofenda a probidade administrativa, e não apenas o patrimônio.

(C) O indivíduo que tenta o suicídio pode ser sujeito ativo e passivo da própria conduta.

(D) Há crimes que se caracterizam pela pluralidade de objetos materiais, mas nenhum crime prescinde de objeto material.

(E) Crime de dever, semelhante ao crime de domínio, é aquele praticado dolosamente por quem rege a conduta dos demais envolvidos no crime, incidindo, nesse caso, a teoria do domínio do fato.

1 - Comentários ao item A
 (A) Em direito penal, entende-se a tentativa como uma forma de adequação típica de subordinação imediata ou direta.
 
A alternativa A está errada.

De acordo com a teoria do delito, há duas formas de adequação típica em Direito Penal:

a) adequação típica de subordinação imediata ou direta: o fato delituoso necessita tão somente de um dispositivo legal para que ocorra o seu enquadramento. Exemplo doutrinário clássico é o do art. 121, caput, do CP, in verbis:

Homicídio simples

Art. 121. Matar alguém:

Pena - reclusão, de seis a vinte anos.

Note o leitor que o tipo penal de homicídio não exige nenhuma espécie de qualidade especial do agente (crime comum). Basta que sua conduta amolde-se ao preceito penal primário ("matar alguém"), que pode ser definido como a ação de eliminar ou suprimir a vida de um ser humano, para que se dê a adequação típica direta ou imediatamente.  

b) adequação típica de subordinação mediata ou indireta: o fato delituoso necessita de mais de um dispositivo legal para que ocorra o seu enquadramento. A valer-me novamente do clássico exemplo doutrinário, temos que o tipo do art. 121, caput, do CP prevê a conduta de "matar" alguém, mas não a de "tentar matar" alguém, de modo que, em princípio, a tentativa de homicídio simples permaneceria impunível (porque não típica). Logo, para solver esse problema, a doutrina reconhece a possibilidade da adequação típica de subordinação indireta ou mediata, caso em que a tipicidade formal far-se-á à luz de normas de extensão da tipicidade, isto é, normas que tem a função de ampliar a esfera de incidência dos tipos penais.    

Voltando ao exemplo do homicídio simples tentado, a adequação típica dessa conduta torna-se possível, no Direito Penal brasileiro, pela conjugação do tipo do art. 121, caput, com a norma do art. 14, II, in verbis

 Art. 14 - Diz-se o crime: 
 
omissis

Tentativa 
II - tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente. 

Assim, com base na tentativa (norma de extensão temporal da tipicidade), o homicídio é punível seja pela via da adequação típica de subordinação direta ou imediata (o agente mata efetivamente alguém), seja pela via da adequação típica de subordinação indireta ou mediata (o agente tentou causar a morte da vítima, mas, iniciada a execução, foi impedido por circunstâncias alheias à sua vontade). Na primeira hipótese, a capitulação penal será CP, art. 121. Na segunda hipótese, será CP, art. 121, c/c art. 14, II - pois aqui o operador do Direito precisará valer-se de uma norma de extensão da tipicidade para proceder ao enquadramento típico da conduta do agente.  

Finalmente, acredito seja oportuno lembrar ao leitor que, além da regra da tentativa, existem outras normas previstas no Código Penal que têm o propósito de ampliar a incidência dos tipos legais. É o caso da norma que prevê o dever jurídico de agir do agente garante ou agente garantidor, a possibilitar a existência dos chamados crimes omissivos impróprios (ou impuros ou comissivos por omissão). Vejamos o § 2º do art. 13 do CP:

Relevância da omissão 

§ 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:

a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; 

b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; 

c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.

Nessas hipóteses, o que caracteriza a omissão impura ou imprópria é justamente o descumprimento de um dever jurídico especial de agir atribuído ao agente por força do art. 13, § 2º, do CP (norma de extensão causal). Por exemplo: sujeito vê bebê abandonado com fome, nada faz e o infante vem a morrer; responde pela omissão própria ou pura, porque tinha apenas um dever genérico de agir (CP, art. 135). Mas se o sujeito que deixa o bebê morrer de fome é o pai, aí existe um dever jurídico de agir, pois o exercício do poder familiar pressupõe o zelo  e decorre de lei (CC, art. 1.634, I), de modo que o agente responde pelo crime de homicídio comissivo por omissão.

Outra norma de extensão da tipicidade penal encontra-se no art. 29 do Código:

Regras comuns às penas privativas de liberdade

Art. 29 - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade. 

§ 1º - Se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço. 

§ 2º - Se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave.

A doutrina classifica o art. 29 como sendo uma norma de extensão pessoal e espacial da tipicidade. Segundo o dispositivo, a tipicidade penal estende-se, de maneira a autorizar a punição não só do autor (o agente que pratica diretamente a ação delitiva), mas também do partícipe (o agente que pratica atos paralelos, acessórios, que são relevantes para a prática do delito, porém sem incorrer na conduta descrita pelo preceito primário da norma penal). 

Chamo a atenção do leitor para a circunstância de que, em face de o partícipe não praticar a ação nuclear típica (hipótese de autoria ou coautoria), não tivesse o legislador previsto a norma de extensão da tipicidade do art. 29 do CP (adequação típica de subordinação mediata ou indireta), sua conduta seria de per si atípica.     

2 - Comentários ao item B

(B) O princípio da insignificância incide nos crimes contra a administração pública, o que exclui a tipicidade, mesmo que a conduta praticada ofenda a probidade administrativa, e não apenas o patrimônio.
 
A alternativa B está correta (de acordo com a jurisprudência do STF).

A questão versa sobre um tema muito polêmico na doutrina e na jurisprudência: a aplicação do princípio da insignificância nos crimes cometidos contra a Administração Pública (art. 312 e ss. do CP).

De início, sublinho que o tipo legal não se confunde com tipo penal. O primeiro representa a descrição abstrata de ofensa ao bem jurídico tutelado. É um conceito linguístico, gramatical, mediante o qual o legislador valora negativamente a ação ofensiva ao bem jurídico. O segundo é um conceito mais abrangente, que incorpora ao conceito de tipo legal (descrição formal-gramatical) as características inerente ao tipo injusto - entendido como uma forma específica de ofensa ao bem jurídico penalmente tutelado.

Disso decorre que o tipo penal, além da descrição abstrata de crime contida em lei (tipo legal), pressupõe uma série de exigências implícitas (não descritas). É daí que surgem características como a análise de dolo e culpa no tipo, desvalor do resultado (lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico), censurabilidade ou reprovação da conduta, nexo de imputação objetiva etc. Todas essas exigências reunidas, e que variam muita vez conforme corrente doutrinária seguida pelo intérprete, compõem o tipo penal - conceito bem mais amplo que o de tipo legal, portanto.       

Modernamente, vem prevalecendo na doutrina brasileira, sob a influência do finalismo de Welzel e do funcionalismo teleológico de Roxin, que o juízo de tipicidade (a verificação que se faz para saber se determinado fato é típico ou atípico) pressupõe uma tripla dimensão: formal, material e subjetiva. Na dimensão formal (tipicidade formal), o intérprete avalia a inclusão da conduta do agente no tipo previsto abstratamente pela lei penal. Na dimensão material (tipicidade material), o intérprete avalia se a conduta do agente é penalmente relevante, isto é, se a lesão provocada foi capaz de ofender efetivamente o bem jurídico tutelado. Na dimensão subjetiva (tipicidade subjetiva), o intérprete avalia a presença do elemento anímico na conduta do agente, já que, salvo exceção prevista em lei, todo crime só é punível a título de dolo.    

É precisamente na avaliação da tipicidade material que tem se desenvolvido a doutrina relativa ao princípio da insignificância. Note o leitor que não se cuida de princípio previsto em lei, mas sim de construção meramente doutrinária e jurisprudencial.

Assim, cumpre frisar que a jurisprudência do STF consolidou-se no sentido de que o princípio da insignificância é causa de exclusão da tipicidade material, como de resto ficou consagrado no acórdão paradigma do HC 84.412/SP (grifo meu):

E M E N T A: PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL - CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL - DELITO DE FURTO - CONDENAÇÃO IMPOSTA A JOVEM DESEMPREGADO, COM APENAS 19 ANOS DE IDADE - "RES FURTIVA" NO VALOR DE R$ 25,00 (EQUIVALENTE A 9,61% DO SALÁRIO MÍNIMO ATUALMENTE EM VIGOR) - DOUTRINA - CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF - PEDIDO DEFERIDO. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL. - O princípio da insignificância - que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal - tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal postulado - que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada - apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público. O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA E A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL: "DE MINIMIS, NON CURAT PRAETOR". - O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor - por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes - não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social.
(STF, Segunda Turma, HC 84.412/SP, Rel. Min. Celso de Mello, j. 19/10/2004, p. DJ 19.11.2004) 

De acordo com esse aresto, conclui-se que, segundo o STF, o princípio da insignificância funciona como causa de exclusão da tipicidade. Mas é preciso enfatizar que o fica afastada não é a tipicidade na sua dimensão formal, e sim a tipicidade na sua dimensão material, como fica evidente no acórdão abaixo (grifo meu):

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PENAL. CRIME DE DESCAMINHO. CRITÉRIOS DE ORDEM OBJETIVA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. HABEAS CORPUS CONCEDIDO DE OFÍCIO.
1. O princípio da insignificância tem como vetores a mínima ofensividade da conduta do agente, a nenhuma periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada (HC 84.412/SP).
2. No presente caso, considero que tais vetores se fazem simultaneamente presentes. Consoante o critério da tipicidade material (e não apenas formal), excluem-se os fatos e comportamentos reconhecidos como de bagatela, nos quais têm perfeita aplicação o princípio da insignificância. O critério da tipicidade material deverá levar em consideração a importância do bem jurídico possivelmente atingido no caso concreto. Assim, somente é possível cogitar de tipicidade penal quando forem reunidas a tipicidade formal (a adequação perfeita da conduta do agente com a descrição na norma penal), a tipicidade material (a presença de um critério material de seleção do bem a ser protegido) e a antinormatividade (a noção de contrariedade da conduta à norma penal, e não estimulada por ela).
3. A lesão se revelou tão insignificante que sequer houve instauração de algum procedimento fiscal. Realmente, foi mínima a ofensividade da conduta do agente, não houve periculosidade social da ação do paciente, além de ser reduzido o grau de reprovabilidade de seu comportamento e inexpressiva a lesão jurídica provocada. Trata-se de conduta atípica e, como tal, irrelevante na seara penal, razão pela qual a hipótese comporta a concessão, de ofício, da ordem para o fim de restabelecer a decisão que rejeitou a denúncia.
4. A configuração da conduta como insignificante não abarca considerações de ordem subjetiva, não podendo ser considerados aspectos subjetivos relacionados, pois, à pessoa do recorrente. 5. Recurso extraordinário improvido. Ordem de habeas corpus, de ofício, concedida.
(STF, Segunda Turma, RE 536.486/RS, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 26/08/2008, p. DJe 18.09.2008) 

Outro aspecto importante a se destacar no assunto é que o Supremo Tribunal Federal fixou jurisprudencialmente quatro requisitos ou vetores objetivos para o reconhecimento da bagatela:

(a) mínima ofensividade da conduta;
(b) nenhuma periculosidade social da ação;
(c) reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e
(d) inexpressividade da lesão jurídica provocada. 

No entanto, além desses vetores objetivos, o exame das decisões do STF revela que o tribunal também condiciona a incidência do princípio à avaliação de requisitos subjetivos, tais quais a condição econômica da vítima, as circunstâncias da prática do delito, o resultado do crime, o valor sentimental do bem. Ou seja, o ínfimo valor da coisa não serve de per si para afastar a tipicidade material.

Exemplo desse pensamento na Suprema Corte encontra-se em recente julgamento da Segunda Turma, no qual a contumácia delitiva do réu foi o argumento utilizado para negar a aplicação do princípio da insignificância à tentativa de furto de uma bicicleta no valor de R$ 200,00 (RHC 114717/MS). Em outra decisão recente, a Segunda Turma afastou a incidência do crime de bagatela no furto de duas peças de picanha com base na reincidência do réu. Na ocasião, o relator do HC ressaltou que, posto que o valor do objeto do furto fosse baixo (R$ 69,00), o acusado aparentava dar mostras de que fazia da prática criminosa um meio de vida, de modo que caberia, assim, ao julgador considerar a conduta do condenado e a sua habitualidade na vida criminosa. Colaciono o aresto: 

Ementa: RECURSO ORINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PENAL. PACIENTE CONDENADO PELO CRIME DE FURTO SIMPLES. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. REPROVABILIDADE E OFENSIVIDADE DA CONDUTA DO AGENTE. REITERAÇÃO CRIMINOSA. RECURSO IMPROVIDO.
I – A aplicação do princípio da insignificância, de modo a tornar a ação atípica, exige a satisfação, de forma concomitante, de certos requisitos, quais sejam, conduta minimamente ofensiva, ausência de periculosidade social da ação, reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e lesão jurídica inexpressiva.
II – No caso sob exame, infere-se dos autos que o paciente dá mostras de fazer das práticas criminosas o seu modus vivendi, uma vez que possui extensa lista de inquéritos policias e ações penais, inclusive condenações definitivas pelo mesmo delito.
III – Na espécie, a aplicação do referido instituto poderia significar um verdadeiro estímulo à prática destes pequenos furtos, já bastante comuns nos dias atuais, o que contribuiria para aumentar, ainda mais, o clima de insegurança hoje vivido pela coletividade.
IV – A pena, de resto, estabelecida em 2 anos e 4 meses de reclusão, que não foi substituída por sanção restritiva de direitos ante a vedação legal prevista no art. 44, II, do Código Penal (reincidência), não desbordou os lindes da proporcionalidade e da razoabilidade, mostrando-se adequada ao caso concreto e necessária à repressão e prevenção de novos delitos.
V – Recurso improvido.
(STF, Segunda Turma, RHC 115.490/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 21/05/2013, p. DJe 07.06.2013) 

Entretanto, essa decisão precisa ser interpretada cum grano salis, isto é, com reservadas, pois a jurisprudência do STF e do STJ reconhecem que a existência de condições pessoais desfavoráveis, como maus antecedentes, reincidência ou ações penais em curso, não impede a aplicação do princípio da insignificância. Colaciono (grifo meu): 

PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. REMÉDIO CONSTITUCIONAL SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. IMPOSSIBILIDADE. NÃO CONHECIMENTO. MANIFESTA ILEGALIDADE VERIFICADA. FURTO. INEXPRESSIVA LESÃO AO BEM JURÍDICO TUTELADO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. POSSIBILIDADE.
1. À luz do disposto no art. 105, I, II e III, da Constituição Federal, esta Corte de Justiça e o Supremo Tribunal Federal não vêm mais admitindo a utilização do habeas corpus como substituto de recurso ordinário, tampouco de recurso especial, nem como sucedâneo da revisão criminal, sob pena de se frustrar a celeridade e desvirtuar a essência desse instrumento constitucional.
2. Entretanto, esse entendimento deve ser mitigado, em situações excepcionais, nas hipóteses em que se detectar flagrante ilegalidade, nulidade absoluta ou teratologia a ser eliminada, situação ocorrente na espécie.
3. Para a incidência do princípio da insignificância são necessários a mínima ofensividade da conduta do agente, nenhuma periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada.
4. No caso, não há como deixar de reconhecer a mínima ofensividade do comportamento do paciente, que subtraiu 11 (onze) latas de leite em pó Itambé, avaliadas em R$ 76,89 (setenta e seis reais e oitenta e nove centavos), sendo de rigor o reconhecimento da atipicidade da conduta.
5. Ressalte-se, ainda, que, segundo a jurisprudência consolidada nesta Corte e também no Supremo Tribunal Federal, a existência de condições pessoais desfavoráveis, tais como maus antecedentes, reincidência ou ações penais em curso, não impedem a aplicação do princípio da insignificância.
6. Habeas corpus não conhecido, concedida a ordem de ofício a fim de, aplicando o princípio da insignificância, obstar a persecução penal contra a paciente.
(STJ, T6 - Sexta Turma, HC 250.122/MG, Rel. Min. Og Fernandes, j. 02/04/2013, p. DJe 01/08/2013) 

Mas a alternativa proposta pela banca trata especificamente da possibilidade de incidência do princípio da insignificância nos crimes contra a Administração Pública. Aqui é preciso considerar a discrepância de entendimentos quanto ao assunto na jurisprudência do STF e do STJ.

Vejamos.

O Superior Tribunal de Justiça tem jurisprudência pacífica pela impossibilidade de aplicação do princípio da insignificância nos crimes contra a Administração Pública. Colaciono (grifos meus):

HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. PECULATO-FURTO.  AUSÊNCIA DE DEFESA PRELIMINAR. NULIDADE RELATIVA. PRECLUSÃO. PREJUÍZO NÃO DEMONSTRADO. DENÚNCIA INSTRUÍDA COM O INQUÉRITO POLICIAL. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE.
1. A nulidade pela ausência de abertura de prazo para oferecimento da defesa preliminar prevista no art. 514 do Código de Processo Penal tem natureza relativa, devendo ser arguida tempestivamente e com demonstração do prejuízo, sob pena de preclusão.
2. Se a denúncia se fez acompanhar do inquérito policial, também fica afastada a existência de nulidade pela falta de defesa prévia, conforme a dicção da Súmula n.º 330 do Superior Tribunal de Justiça.
3. No caso concreto, a Defesa silenciou acerca do tema durante todo o iter processual, vindo a alegar a mácula tão somente por ocasião da impetração do presente habeas corpus, dirigido contra o acórdão - já transitado em julgado - proferido na apelação.
4. Segundo o entendimento das Turmas que compõem a Terceira Seção desta Corte Superior de Justiça, é inaplicável o princípio da insignificância aos crimes contra a Administração Pública, pois, nesses casos, a norma penal busca resguardar não somente o aspecto patrimonial, mas a moral administrativa, o que torna inviável a afirmação do desinteresse estatal à sua repressão.
5. Ordem denegada. Pedido de reconsideração da liminar julgado prejudicado.
(STJ, T5 - Quinta Turma, HC 165.725/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 31/05/2011, p. DJe 16/06/2011) 

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CRIME CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. PECULATO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES.
1. O entendimento firmado nas Turmas que compõem a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que não se aplica o princípio da insignificância aos crimes contra a Administração Pública, ainda que o valor da lesão possa ser considerado ínfimo, uma vez que a norma visa resguardar não apenas o aspecto patrimonial, mas, principalmente, a moral administrativa.
2. Agravo regimental a que se nega provimento.
(STJ, T5 - Quinta Turma, AgRg no REsp 1.275.835/SC, Rel. Min. Adilson Vieira Macabu (Des. convocado do TJ/RJ), j. 11/10/2011, p. DJe 01/02/2012) 

Já o STF, embora durante longo tempo tenha entendido da mesma maneira que o STJ, hoje vem admitindo incipientemente a aplicação do princípio da insignificância aos crimes contra a Administração Pública, senão vejamos:

EMENTA: AÇÃO PENAL. Delito de peculato-furto. Apropriação, por carcereiro, de farol de milha que guarnecia motocicleta apreendida. Coisa estimada em treze reais. Res furtiva de valor insignificante. Periculosidade não considerável do agente. Circunstâncias relevantes. Crime de bagatela. Caracterização. Dano à probidade da administração. Irrelevância no caso. Aplicação do princípio da insignificância. Atipicidade reconhecida. Absolvição decretada. HC concedido para esse fim. Voto vencido. Verificada a objetiva insignificância jurídica do ato tido por delituoso, à luz das suas circunstâncias, deve o réu, em recurso ou habeas corpus, ser absolvido por atipicidade do comportamento.
(STF, Segunda Turma, HC 112.388/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Rel. p/ Acórdão Min. Cezar Peluso, j. 21/08/2012, p. DJe 13/09/2012) 

Foi exatamente o acórdão supracitado que a banca cobrou na assertiva. Contudo, o examinador elaborou-a mal, pois, no comando, malgrado a existência de funda divergência jurisprudencial na matéria, não discriminou se o candidato deveria responder de acordo com o pensamento do STJ (que não admite a aplicação do princípio da insignificância nos crimes contra a Administração Pública) ou do STF (que admite a aplicação do princípio da insignificância nos crimes contra a Administração Pública). Por esse motivo a questão, invariavelmente, teve de ser anulada.    

3 - Comentários ao item C

(C) O indivíduo que tenta o suicídio pode ser sujeito ativo e passivo da própria conduta.
 
A alternativa C está errada.

Embora a História revele exemplos de civilizações passadas que puniam a pessoa do suicida, modernamente, as legislações afastam tal possibilidade. O Código Penal brasileiro segue essa linha, de modo que a ação de matar-se ou a sua tentativa não são criminalizadas, senão a conduta de terceiro que contribui para a ocorrência do suicídio, seja instigando, seja auxiliando, seja induzindo a vítima a ceifar a própria vida.

Eis o tipo do art. 122 do CP: 

Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio

Art. 122 - Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça:

Pena - reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave.
 
Parágrafo único - A pena é duplicada:

Aumento de pena

I - se o crime é praticado por motivo egoístico;

II - se a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência.

Como o Código só pune a conduta de terceiro, até porque o bem jurídico tutelado pena norma penal é a vida alheia, está patente a impossibilidade de o suicida vir a ser considerado sujeito ativo de qualquer crime. O leitor poderia pensar ainda na hipótese da tentativa de suicídio, ao que se aplicaria raciocínio idêntico: o Código não pude a tentativa de suicídio; pune tão só a conduta do terceiro que instiga, induz ou auxilia o suicídio, nos moldes do art. 122. Logo, mesmo na tentativa de suicídio, é impossível o suicida ser considerado sujeito ativo e passivo da sua própria conduta.   

4 - Comentários ao item D

(D) Há crimes que se caracterizam pela pluralidade de objetos materiais, mas nenhum crime prescinde de objeto material.
 
A alternativa D está errada.

De acordo com a doutrina, o objeto do crime é o bem ou objeto contra o qual se dirige a conduta criminosa. O objeto jurídico, por seu turno, pode ser (a) objeto jurídico ou (b) objeto material.

a) objeto jurídico: é o bem jurídico (interesse ou valor tutelado pela norma penal);

b) objeto material: é a pessoa ou coisa que suporta (ou sobre a qual recai) a conduta criminosa.  

No campo da teoria do crime, a doutrina entende que não existe crime sem objeto jurídico, isto é, toda ação criminosa viola um bem ou valor penalmente tutelado pela norma penal. Assim, não pode haver delito que não vise à proteção de algum interesse considerado socialmente relevante.

O mesmo não se pode dizer do objeto material. Na verdade, a doutrina reconhece que existe crime sem objeto material. São exemplos comumente apontados os crimes de mera conduta ou de simples atividade, que são aqueles delitos para a consumação dos quais o resultado naturalístico não só não é necessário como é mesmo impossível (a lei penal não descreve resultado naturalístico, limitando-se a descrever uma conduta). Logo, delitos como ato obsceno (CP, art. 233), reingresso de estrangeiro expulso (CP, art. 338), desobediência (CP, art. 330), porte ilegal de arma de fogo (Lei 10.826/03, arts. 14 e 16) todos classificados como crimes de mera conduta, prescindem de objeto material. Aquilo de que o legislador não pode prescindir nunca é o objeto jurídico, como afirmei antes.     

5 - Comentários ao item E

(E) Crime de dever, semelhante ao crime de domínio, é aquele praticado dolosamente por quem rege a conduta dos demais envolvidos no crime, incidindo, nesse caso, a teoria do domínio do fato.
 
A alternativa E está errada.

Trata-se de uma assertiva concernente à classificação de crimes, logo, puramente doutrinária, uma vez que as classificações variam de conformidade com o doutrinador, sem contar as nomenclaturas bizarras criadas eventualmente pela jurisprudência. 

Desse modo, Luiz Flávio Gomes e Antônio García-Pablos de Molina (in: Direito Penal: parte geral. Coleção Ciências Criminais, v. 2. 2º ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 402, grifos dos autores) elucidam a classificação que diferencia os crimes de domínio, de mão própria e de dever:

Crimes de domínio são os crimes dolosos regidos pela regra do domínio do fato. Caracterizam-se por admitir: co-autoria, participação, autoria mediata e atuação dolosamente distinta.
Crime de mão própria: é o que exige atuação pessoal do agente. Não admite co-autoria, em regra (salvo casos excepcionalíssimos. Por exemplo: terceiro que segura a criança para que a mãe pratique o infanticídio), nem a autoria mediata nem atuação dolosamente distinta. Admite participação.
Crime de dever: é o crime que se caracteriza pela violação de um dever. Exemplo: crime culposo (que consiste na violação de um dever de cuidado). O crime de dever não admite: co-autoria, nem autoria mediata, nem atuação dolosamente distinta. O crime culposo, ademais, não admite a participação. O crime omissivo também é um crime de dever (dever de agir e não realização da conduta que devia ser realizada).   

Diante da lição acima, fica evidente que o examinador misturou os conceitos de crimes de dever e de domínio. Assim, apenas o crime de domínio é aquele praticado dolosamente por quem rege a conduta dos demais envolvidos no crime, aplicando-se, nesse caso, a teoria do domínio do fato. É diferente do crime de dever, que ocorre quando o agente viola um dever.   

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