segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

CLÁUSULA DE RESERVA DE PLENÁRIO E CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE PELOS TRIBUNAIS: apontamentos sobre a aplicabilidade da Súmula Vinculante 10 segundo a jurisprudência do STF

Min. Luis Roberto Barroso, relator da RCL 18896/SP no STF
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Baroque Christimas Concert: From the Cathedral in Freiburg" (2010),
de Freiburger Barockorchester, German Brass e Freiburger Domsingknaben.
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da soprano Barbara Bonney e do barítono Matthias Goerne, sob a regência de Ruth Käch.
No repertório, obras de J. S. Bach, W. A. Mozart e G. F. Handel.
Imperdível para todos os fãs de música barroca!  


Uma das consequências do sistema jurisdicional misto de controle de constitucionalidade adotado pela Constituição de 1988 é a existência de regras que ora se reportam ao controle concentrado-abstrato, ora ao controle difuso-concreto. Identificá-las no texto constitucional é parte do trabalho do jurista, já que o legislador constituinte não se ocupou de dar-lhes uma sistematização didática.

Assim, se de um lado o art. 103 da CF/88 é claramente uma norma voltada a disciplinar a legitimidade ativa para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade, o que é parte do controle concentrado, o art. 97 é norma integrante do controle difuso, conquanto nem sempre seja percebida como tal.

Esse art. 97 da Constituição, como é cediço, estabelece a cláusula de reserva de plenário nos termos seguintes:

Art. 97. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.

É uma regra dirigida aos tribunais, consoante se nota da sua redação. Por isso mesmo é parte do controle difuso, que é aquele que, por definição, é exercido por qualquer juiz ou tribunal incidentalmente no curso de um processo constitucional subjetivo, com a finalidade de proteger direitos subjetivos (inter partes).    

No entanto, não obstante a competência difusa dessa espécie de controle, a cláusula de reserva de plenário (art. 97) é uma exigência que o texto constitucional impõe tão somente aos tribunais, não se aplicando a juízes monocráticos e turmas recursais, por exemplo.  

Significa dizer que, no Brasil, o modelo de controle difuso de constitucionalidade não permite que qualquer órgão de tribunal declare a invalidade de uma lei ou ato normativo. Dada a gravidade da atuação jurisdicional nessas hipóteses, que pode acarretar o desfazimento da presunção de legitimidade do produto da atividade legiferante, o legislador constituinte cometeu (reservou) tal atribuição apenas ao plenário ou ao órgão especial. E foi além: não apenas a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo fica restrita ao plenário ou ao órgão especial como também é preciso respeitar o quorum de decisão, isto é, a maioria absoluta de seus membros. Inobservadas essas imposições procedimentais, a atuação do tribunal - enquanto órgão fiscalizador in concreto da validade dos atos normativos - não se justifica.       

Em que pese a clareza da cláusula, alguns tribunais passaram a se utilizar de um curioso subterfúgio para controlar a constitucionalidade das leis sem que, para tanto, precisassem socorrer-se do plenário ou do órgão especial. A tese funcionava da seguinte forma: o órgão julgador afastava a incidência de uma determinada norma, a decidir a lide com base em outros critérios, sem declarar expressamente a inconstitucionalidade do ato normativo. Assim, apesar de não explicitar a decisão que entendeu da invalidade, o resultado prático continuava a ser a ineficácia concreta da regra legal.

A jurisprudência do STF logo se apercebeu dessa manobra, censurando-a, como se nota deste precedente (grifo meu):

EMENTA: I. Controle de constitucionalidade: reserva de plenário e quorum qualificado (Constituição, art. 99): aplicação não apenas à declaração em via principal, quanto à declaração incidente de inconstitucionalidade, para a qual, aliás, foram inicialmente estabelecidas as exigências. II. Controle de constitucionalidade; reputa-se declaratório de inconstitucionalidade o acórdão que - embora sem o explicitar - afasta a incidência da norma ordinária pertinente à lide para decidi-la sob critérios diversos alegadamente extraídos da Constituição. (STF, Primeira Turma, RE 240.096/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 30/03/1999, p. DJ 21/05/1999).

Desse modo, a censura do STF consistiu em reconhecer que o acórdão lavrado pelo tribunal que afastava a incidência da norma, ainda que não declarasse expressamente a sua invalidade, poderia ser considerado exercício, sim, de controle de constitucionalidade difuso. Todavia, como a decisão colegiada não tinha observado a reserva de plenário (art. 97), impunha-se sua reforma.

Esses fundamentos se foram sedimentando mais e mais no repertório de decisões da Suprema Corte, o que culminou com a aprovação, na sessão plenário de 18/06/2008, do enunciado nº 10 da súmula de jurisprudência vinculante do STF. Colaciono:

STF, Súmula Vinculante 10

Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte.

Mas é importante sublinhar que a edição desse enunciado com caráter vinculante não impediu que a própria jurisprudência do STF evoluísse para discriminar as hipóteses ensejadoras de sua aplicação.

Uma delas diz respeito ao fato de que a simples ausência de aplicação de uma determinada norma jurídica ao caso concreto não implica de per si contrariedade ao enunciado nº 10 da súmula vinculante. É a conclusão que se extrai do julgado a seguir (grifo meu):

EMENTA: RECLAMAÇÃO. SÚMULA VINCULANTE N. 10. REVISÃO DE BENEFÍCIO. LEI N. 9.032/95. DECISÃO DA SEXTA TURMA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RESERVA DE PLENÁRIO. NÃO CONFIGURADO O DESCUMPRIMENTO DA SÚMULA VINCULANTE N. 10 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. 1. A simples ausência de aplicação de uma dada norma jurídica ao caso sob exame não caracteriza, apenas por isso, violação da orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal. 2. Para caracterização da contrariedade à súmula vinculante n. 10, do Supremo Tribunal Federal, é necessário que a decisão fundamente-se na incompatibilidade entre a norma legal tomada como base dos argumentos expostos na ação e a Constituição. 3. O Superior Tribunal de Justiça não declarou a inconstitucionalidade ou afastou a incidência dos arts. 273, § 2º, e 475-o, do Código de Processo Civil e do art. 115, da Lei n. 8.213/91, restringindo-se a considerá-los inaplicáveis ao caso. 4. Reclamação julgada improcedente. (STF, Tribunal Pleno, Rcl 6944/DF, Rel. Min. Carmen Lúcia, j. 23/06/2010, p. DJe 12/08/2010).

Cumpre observar igualmente que o enunciado vinculante nº 10 representa a cristalização do pensamento da Corte Suprema a respeito de uma interpretação específica do art. 97 da Constituição. Logo, considerando que esse mesmo art. 97 circunscreve sua aplicabilidade ao controle difuso exercitado pelos tribunais, só se pode invocar o enunciado respectivo para aquelas demandas de caráter jurisdicional, e não para as de cunho meramente administrativo.

Nesse sentido, vai o acórdão seguinte (grifo meu):

EMENTA: PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. QUÓRUM DE APROVAÇÃO DA SUGESTÃO DE PENA DE DEMISSÃO. ALEGAÇÃO DE OFENSA À SÚMULA VINCULANTE Nº 10 E AO JULGADO NA ADI Nº 3.227/MG. IMPROCEDÊNCIA DA RECLAMAÇÃO. 1. Por atribuição constitucional, presta-se a reclamação para preservar a competência do STF e garantir a autoridade de suas decisões (art. 102, inciso I, alínea l, CF/88), bem como para resguardar a correta aplicação das súmulas vinculantes (art. 103-A, § 3º, CF/88). 2. O alcance da Súmula Vinculante nº 10 está restrito à esfera para a qual se volta a norma do art. 97 da CF/88, qual seja, a esfera jurisdicional. 3. Não há aderência estrita entre a ADI nº 3.227/MG e o ato reclamado que seja apta a instaurar a competência originária do STF em sede reclamatória. 4. É incabível o uso da reclamação pelo jurisdicionado para se furtar ao trâmite processual ordinário de discussão do direito pretendido. 5. Reclamação improcedente. (STF, Primeira Turma, Rcl 9360/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 30/09/2014, p. DJe 14/11/2014).

Seja como for, o tempo revelou que a virtual contrariedade ao enunciado nº 10 da súmula de jurisprudência vinculante do STF é uma ameaça constante à autoridade das decisões do STF em matéria constitucional. Não sem razão, esse tema é presença permanente na pauta de julgamentos da Suprema Corte brasileira.

Um dos casos mais recentes de desrespeito ao enunciado nº 10 deu-se no julgamento da Reclamação 18896/SP. Nesse precedente, a suma dos fatos reportava-se a uma decisão da 1ª Câmara de Direito Privado Tribunal de Justiça de São Paulo que havia lavrado acórdão por meio do qual reconhecia a uma mulher, na qualidade de companheira, a condição de única herdeira do de cujus. O problema é que, para assim concluir, a Corte paulista precisou aplicar ao caso o art. 1.829 do CC, norma de direito sucessório cabível para as hipóteses de sucessão legítima, havidas de prévia relação casamentária.

Dessa maneira, o tribunal estadual recusou-se a aplicar o art. 1.790 do mesmo código, regra que disciplina a sucessão causa mortis advinda da união estável em termos distintos, a comportar uma concorrência maior entre os herdeiros. Na decisão, o TJSP entendeu que a sucessão causa mortis na união estável deveriam reger-se pelas mesmas regras aplicáveis à sucessão causa mortis no casamento (CC, art. 1.829). Eis o acórdão:  

Inventário – Decisão que reconheceu a condição da agravada de única herdeira do 'de cujus', na qualidade de companheira, afastando a aplicação do disposto no artigo 1.790 do Código Civil, nomeando-a como inventariante – Agravante que, na qualidade irmão unilateral do 'de cujus', pleiteia o reconhecimento de sua condição de herdeiro com a homologação do plano de partilha apresentado em observância ao disposto no artigo 1.790 do Código Civil e sua manutenção no cargo de inventariante – Manutenção da decisão agravada – Interpretação infraconstitucional do disposto no artigo 1.790 do Código Civil que afasta sua aplicação ao caso em tela – Equiparação do regime sucessório entre cônjuge e companheira – Observância do disposto no inciso II do art. 1.829 do Código Civil – Companheira que, na condição de única herdeira do 'de cujus', deve ser mantida no cargo de inventariante, em vista do disposto no inciso I do artigo 990 do Código de Processo Civil. Nega-se provimento ao recurso. (TJSP, 1ª Câmara de Direito Privado, AI 2102911-71.2014.8.26.0000/SP, Rel. Des. Cristiane Santini, j. 09/09/2014).

Percebe-se então que, ao proceder a uma equiparação entre os regimes sucessórios de cônjuge e companheira,  a 1ª Câmara de Direito Privado do TJSP contrariou o enunciado nº 10 da súmula de jurisprudência vinculante do STF. O motivo repousa na constatação o afastamento da incidência do art. 1.790 do Código Civil implicou claramente exercício de controle difuso de constitucionalidade, não obstante o órgão julgador não o tenha declarado expressamente na ementa do acórdão. O efeito prático da decisão do TJSP foi um só: deixou de aplicar a regra legal para a sucessão causa mortis em união estável.

Nessas circunstâncias, então, o sistema jurídico admite o cabimento da reclamação constitucional, que é o instrumento destinado a preservar a competência e garantir a autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102, I, l). Esse mesmo raciocínio é válido para a decisão judicial que contraria ou aplica indevidamente o enunciado de súmula vinculante, consoante dispõe o art. 103-A, § 3º, da CF/88, c/c o art. 7º da Lei 11.417/06:

Art. 103-A omissis

[...]

§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.

Art. 7º  Da decisão judicial ou do ato administrativo que contrariar enunciado de súmula vinculante, negar-lhe vigência ou aplicá-lo indevidamente caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal, sem prejuízo dos recursos ou outros meios admissíveis de impugnação.

§ 1º  Contra omissão ou ato da administração pública, o uso da reclamação só será admitido após esgotamento das vias administrativas.

§ 2º  Ao julgar procedente a reclamação, o Supremo Tribunal Federal anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial impugnada, determinando que outra seja proferida com ou sem aplicação da súmula, conforme o caso.

Ciente disso, o irmão do de cujus, sabedor de que, pelas regras aplicáveis à sucessão causa mortis na união estável, fazia jus à condição de herdeiro, ajuizou reclamação perante o Supremo Tribunal Federal. Sob a relatoria do Min. Luis Roberto Barroso, a petição foi julgada procedente.

A procedência da RCL 18.896/SP implica reconhecer que a 1ª Câmara de Direito Privado do TJSP não cumpriu o rito exigido para a declaração de inconstitucionalidade pelos tribunais (cláusula de reserva de plenário). No caso concreto, o acórdão, ao afastar a aplicação do art. 1.790 do CC, com fundamento na equiparação entre união estável e casamento, fê-lo em desacordo com a jurisprudência vinculante do tribunal. Isso porque a tese segundo a qual as regras de sucessão hereditária previstas no art. 1.829 do CC aplicar-se-iam também ao companheiro supértiste não pode se sustentar senão ante um juízo declaratório de inconstitucionalidade. Ainda que implícito, tal juízo foi feito no caso concreto, tanto que assim se afastou o art. 1.790 incidente na espécie.

Ora, como esse tipo de declaração só se pode efetuar em sede de tribunal por meio do plenário ou de órgão especial, jamais mediante órgão fracionário, o acórdão da 1ª Câmara de Direito Privado do TJSP incorreu em flagrante violação da cláusula de reserva de plenário (CF, art. 97) e, de forma mediata, do enunciado nº 10 da súmula de jurisprudência vinculante do Supremo Tribunal Federal.

No limite, é fundamental perceber que, em julgados similares ao da RCL 18.896/SP, a procedência da reclamação pressupõe não propriamente a justiça da decisão, mas sim a observâncias escorreita do procedimento aplicável ao controle de constitucionalidade difuso exercido no âmbito dos tribunais.  

REFERÊNCIAS

BRASIL. Código Civil. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 08 de dez. 2014.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 5 de outubro de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 08 de dez. 2014.

BRASIL. Lei 11.417, de 19 de dezembro de 2006. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 08 de dez. 2014.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF, Primeira Turma, RE 240.096/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 30/03/1999, p. DJ 21/05/1999. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 08 dez. 2014.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante 10. Aprovada na sessão plenária de 18/06/2008, p. DJe nº 117 de 27/06/2008, p. DOU 27/06/2008. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 08 dez. 2014.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno, Rcl 6944/DF, Rel. Min. Carmen Lúcia, j. 23/06/2010, p. DJe 12/08/2010. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 08 dez. 2014.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Primeira Turma, Rcl 9360/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 30/09/2014, p. DJe 14/11/2014. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 08 dez. 2014.  
 
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rcl 18896/SP, Rel. Min. Luis Roberto Barroso (decisão monocrática), j. 30/10/2014, p. DJe 04/11/2014. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 08 dez. 2014.

BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. 1ª Câmara de Direito Privado, AI 2102911-71.2014.8.26.0000/SP, Rel. Des. Cristiane Santini, j. 09/09/2014. Disponível em: www.tjsp.jus.br. Acesso em: 08 dez. 2014. 

domingo, 7 de dezembro de 2014

DO PRAZO PRESCRICIONAL PARA A COBRANÇA DE PARCELAS NÃO RECOLHIDAS AO FGTS: inconstitucionalidade da prescrição trintenária da Lei 8.036/90 e superação da súmula 362 do TST a partir do julgamento do ARE 709.212/DF no STF

Min. Gilmar Mendes, relator do ARE 709.212/DF no STF

Ouvindo atualmente: "Stille Nacht... Weihnachtliche Chormusik" (2014),
de RIAS Kammerchor, sob a regência de Uwe Gronostay.
Um álbum com grandes clássicos do repertório natalino, ~
ora interpretados em latim, ora em alemão.
Indico para todos os amantes do canto-coral.


Originalmente, o texto da CLT, que foi promulgado em 1943, previa uma indenização ao empregado celetista que tivesse seu contrato de trabalho por prazo indeterminado rescindido (art. 478). De acordo com o princípio tuitivo que informa o Direito do Trabalho, a ideia a era proteger o trabalhador que se encontrasse em situação de desemprego, premiando-se de conformidade com seu tempo de serviço.

Esse mesmo propósito protetivo inspirou o legislador constituinte décadas depois. Com efeito, a Constituição vigente incorporou o regime do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), que de 1966 a 1988 foi apenas facultativo, tornando-o obrigatório. Assim, o regime de indenização do art. 478 do Diploma Celetista foi abandonado. Restou o regime do FGTS, que passou inclusive a contar com expressa previsão no texto constitucional, senão vejamos:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

[...]

III - fundo de garantia do tempo de serviço;

Dessa maneira, após a Constituição de 1988, o fundo que visa a amparar o empregado no período de desemprego, notadamente com o objetivo de assegurar sua subsistência, passa a ser direito – com caráter obrigatório - de todos os trabalhadores, sejam eles urbanos ou rurais.

No rastro do mandamento constitucional, o legislador editou a Lei 8.036/90, diploma que concentra as normas regentes do FGTS. Basicamente, pode-se dizer que o fundo é alimentado pelas contribuições que são mensalmente recolhidas pelos empregadores ou tomadores de serviço sobre a remuneração paga ao empregado. Para esse fim, é necessária a existência de uma conta vinculada, aberta em nome do trabalhador junto à Caixa Econômica Federal, cujo saldo é absolutamente impenhorável. É o que prevê o art. 2º da Lei do FGTS:

Art. 2º O FGTS é constituído pelos saldos das contas vinculadas a que se refere esta lei e outros recursos a ele incorporados, devendo ser aplicados com atualização monetária e juros, de modo a assegurar a cobertura de suas obrigações.

§ 1º Constituem recursos incorporados ao FGTS, nos termos do caput deste artigo:

a) eventuais saldos apurados nos termos do art. 12, § 4º;

b) dotações orçamentárias específicas;

c) resultados das aplicações dos recursos do FGTS;

d) multas, correção monetária e juros moratórios devidos;

e) demais receitas patrimoniais e financeiras.

§ 2º As contas vinculadas em nome dos trabalhadores são absolutamente impenhoráveis.

A respeito do regime do FGTS, uma questão que sempre se revelou tormentosa no âmbito jurisprudencial diz respeito ao prazo prescricional aplicável à ação ajuizada com vistas a reclamar contra o não recolhimento da contribuição para o fundo.

Nesse sentido, a Lei 8.036/90 estabeleceu o prazo de prescrição de 30 (trinta) anos para o ajuizamento da ação que visa a cobrar os valores não depositados pelo empregador na conta vinculada na CEF. O dispositivo, ei-lo:

Art. 23 omissis

[...]

§ 5º O processo de fiscalização, de autuação e de imposição de multas reger-se-á pelo disposto no Título VII da CLT, respeitado o privilégio do FGTS à prescrição trintenária.

Em seguida, o Poder Executivo editou o Decreto nº 99.684/90, que teve por escopo regulamentar pormenorizadamente aspectos associados ao funcionamento do fundo. Esse ato normativo também reforçou o privilégio da prescrição trintenária no seu art. 55, consoante se observa a seguir:

Art. 55. O processo de fiscalização, de autuação e de imposição de multas reger-se-á pelo disposto no Título VII da CLT, respeitado o privilégio do FGTS à prescrição trintenária.

Logo, o regime aplicável às ações relativas a parcelas do FGTS beneficiar-se-ia de um prazo prescricional privilegiado, da ordem de 30 anos.

O problema é que, com o advento da EC nº 28/00, o legislador constituinte deu a seguinte redação ao inc. XXIX do art. 7º da CF/88. Colaciono:

Art. 7º omissis

[...]

XXIX - ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho;

Ou seja, a Constituição estabeleceu um prazo prescricional quinquenal para a cobrança de créditos trabalhistas, respeitado o limite de dois anos para o ajuizamento da ação após a extinção do contrato de trabalho.

Diante dessa realidade normativa, alguns julgadores se insurgiram contra o prazo prescricional de 30 anos da Lei 8.036/90, entendendo-o descabido à luz do texto constitucional, que, por ser hierarquicamente superior, deveria prevalecer diante do comando infraconstitucional. Assim, para a cobrança dos depósitos não efetuados na conta vinculada do FGTS aplicar-se-ia igualmente o prazo prescricional de 5 anos.    

Naturalmente a questão foi submetida ao TST, que, por meio do enunciado nº 362 da sua súmula de jurisprudência, reiterou a validade da prescrição trintenária aplicável ao FGTS. Colaciono:

TST, Súmula nº 362 

FGTS. PRESCRIÇÃO  (nova redação) - Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003

É trintenária a prescrição do direito de reclamar contra o não-recolhimento da contribuição para o FGTS, observado o prazo de 2 (dois) anos após o término do contrato de trabalho.

O enunciado, como se pode notar, sem embargo de ressalvar o limite bienal para o ajuizamento da ação, afastou o prazo de prescrição quinquenal, como queria parte da jurisprudência obreira. Assim, segundo o TST, o inc. XXIX do art. 7º da CF/88 não se aplicaria ao FGTS integralmente. As razões conducentes do pensamento da Corte Trabalhista podem ser auferidas da leitura deste julgado:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. FGTS. PRESCRIÇÃO TRINTENÁRIA. VIOLAÇÃO DIRETA de LITERAIS DISPOSITIVOS DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. NÃO CONFIGURAÇÃO. DESPROVIMENTO. A atual Constituição da República não prevê, expressa e especificamente, o prazo prescricional relativo a ações que visem o percebimento de diferenças a título de FGTS. Limita-se, em seu artigo 7º, XXIX, "a", a dispor, genericamente, sobre a prescrição das ações que tenham como objeto créditos resultantes das relações de trabalho, permitindo, porém, o entendimento de que tal dispositivo, por situar-se entre os direitos assegurados aos trabalhadores, apenas compõe o patrimônio jurídico mínimo que lhes é garantido, como também possibilitando a qualificados juslaboristas a afirmação de que a norma em tela apenas regularia a prescrição relativa a créditos trabalhistas, enquanto o FGTS, em que pese ao disposto no inciso III do mesmo artigo 7º, possui cunho eminentemente social. Logo, possível é a acepção de que a prescrição relativa ao FGTS é privilegiada, como dispõe expressamente o § 5º do artigo 23 da Lei 8.036/90 e tem apregoado a majoritária jurisprudência trabalhista, à qual se curva este Julgador. Agravo de Instrumento não provido, por não se verificar a ocorrência de violação direta de literalidade dos comandos constitucionais em questão. (TST, Quarta Turma, AIRR-639935-30.2000.5.06.5555, Rel. Min. Guilherme Augusto Caputo Bastos, j. 04/10/2000, p. DEJT 20/10/2000).

O TST, portanto, entendia pacificamente que o prazo trintenário de prescrição dos recolhimentos devidos ao FGTS não colidia com a norma constitucional, em face do seu caráter de “fundo social” representado pelo conjunto de depósitos realizados em favor da subsistência do trabalhador desempregado (princípio tuitivo).

Mas é preciso que se diga que o enunciado nº 362 da súmula do TST aplicava-se tão somente aos chamados “depósitos principais”, isto é, aqueles depósitos devidos pela remuneração paga ao trabalhador e não recolhidos em tempo hábil ao fundo. Nesses casos, a prescrição aplicável era de 30 anos (Lei 8.036/90, art. 23, § 5º), observado o limite de 2 anos após a extinção do contrato de trabalho (CF, art. 7º, XXIX). Todavia, em se tratando de “parcelas reflexas”, que são aquelas devidas ao fundo em razão do não pagamento ou pagamento a menor de parcelas trabalhistas (por exemplo, adicionais, horas extras etc.), a jurisprudência da Corte Obreira fixou a prescrição em 5 anos. É o que determina o enunciado nº 206 da súmula do Tribunal:

TST, Súmula nº 206 

FGTS. INCIDÊNCIA SOBRE PARCELAS PRESCRITAS (nova redação) - Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003

A prescrição da pretensão relativa às parcelas remuneratórias alcança o respectivo recolhimento da contribuição para o FGTS.

No seguinte julgado, encontramos um exemplo prático de aplicação desse enunciado (grifo meu):       

1. DEPÓSITOS DE FGTS. PRESCRIÇÃO TRINTENÁRIA. VERBAS RECONHECIDAS EM JUÍZO. PROVIMENTO. Tratando-se de pleito relativo a parcelas postuladas na demanda trabalhista, que não foram pagas ou pagas a menor pelo empregador, o FGTS assume caráter acessório, submetendo-se a pretensão à regra prescricional contida no artigo 7º, XXIX, da Constituição Federal. Incidência da Súmula nº 206.

2. ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. BASE DE CÁLCULO. SÚMULA VINCULANTE Nº 4 DO STF. EFEITOS PROTRAÍDOS. MANUTENÇÃO DO SALÁRIO MÍNIMO COMO BASE DE CÁLCULO. O E. Supremo Tribunal Federal ao editar a Súmula Vinculante nº 4, assentou, em sua redação, ser inconstitucional a utilização do salário mínimo como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, tratando a matéria de forma genérica, ou seja, não elegeu o salário ou a remuneração do trabalhador a ser utilizada para a base de cálculo relativa ao adicional de insalubridade. E mais, apesar de reconhecer tal inconstitucionalidade, a parte final da Súmula Vinculante nº 4 do STF vedou a substituição desse parâmetro por decisão judicial, razão pela qual, outra não pode ser a solução da controvérsia senão a permanência da utilização do salário mínimo como base de cálculo do adicional de insalubridade, ressalvada a hipótese de salário profissional strictu sensu, até a edição de Lei dispondo em outro sentido ou até que as categorias interessadas se componham em negociação coletiva para estabelecer a base de cálculo que incidirá sobre o adicional em questão.

3. Recurso de revista conhecido e provido. (TST, Sétima Turma, RR-163100-35.2006.5.15.0049, Rel. Min. Guilherme Augusto Caputo Bastos, j. 20/04/2010, p. DEJT 30/04/2010).

O pensamento esposado pelo Tribunal Superior do Trabalho nessa matéria, entretanto, não obteve acolhida junto ao Supremo Tribunal Federal.

De fato, ao julgar o agravo no recurso extraordinário 709.212/DF, com repercussão geral reconhecida, o Plenário do STF entendeu de declarar a inconstitucionalidade das normas que previam o privilégio da prescrição trintenária. Para a maioria dos ministros, é de cinco anos o prazo prescricional aplicável à cobrança de valores não depositados no FGTS.

Em seu voto, o relator, Min. Gilmar Mendes, ressaltou que

[...] a jurisprudência desta Corte não se apresentava concorde com a ordem constitucional vigente quando entendia ser o prazo prescricional trintenário aplicável aos casos de recolhimento e de não recolhimento do FGTS.

Isso porque o art. 7º, XXIX, da Constituição de 1988 contém determinação expressa acerca do prazo prescricional aplicável à propositura das ações atinentes a “créditos resultantes das relações de trabalho”.

[...]

Desse modo, tendo em vista a existência de disposição constitucional expressa acerca do prazo aplicável à cobrança do FGTS, após a promulgação da Carta de 1988, não mais subsistem as razões anteriormente invocadas para a adoção do prazo de prescrição.

Da leitura desse excerto, observa-se que o relator encampou a tese de que o legislador constituinte, ao estipular em 5 anos a prescrição aplicável aos créditos resultantes da relação de trabalho, qui-lo igualmente para as ações relativas à cobrança das parcelas não recolhidas ao FGTS. Isso porque não se pode deixar de reconhecer a natureza trabalhista e social do fundo. Sendo então um fundo de cunho trabalhista, é forçoso reconhecer que os valores devidos ao FGTS constituem “créditos resultantes das relações de trabalho” e, por conseguinte, enquadram-se na norma constitucional que prevê o prazo prescricional de cinco anos, até o limite de dois anos após a extinção contratual (CF, art. 7º, XXIX), para as ações que visam a obtê-los.     

Abraçando esse pensamento, a maioria do Plenário do STF negou provimento ao ARE 709.212. Com isso, além de declarar in concreto a inconstitucionalidade das normas que dispunham acerca da prescrição trintenária, terminou por afastar o enunciado nº 362 da súmula do TST, que aplicava apenas parcialmente o disposto no inc. XXIX do art. 7º (prazo bienal para o ajuizamento da ação trabalhista).  

Por meio desse precedente, evidencia-se que o STF adotou uma interpretação consentânea com a hierarquia superior das normas constitucionais. Prevalece a literalidade do comando inscrito no texto da Constituição de 1988, em detrimento ao posicionamento de parte da doutrina e da jurisprudência – incluindo o próprio TST – que defendia que o art. 7º, XXIX, era um piso de prazo prescricional, uma baliza mínima, que poderia ser perfeitamente excepcionada pelo legislador subalterno em favor da maximização da legislação protetiva do trabalhador. O STF, todavia, preferiu prestigiar o princípio da segurança jurídica, visto que o prazo prescricional de 30 anos vai de encontro ao ideal de estabilidade e certeza que as relações jurídicas travadas em sociedade reclamam.  

REFERÊNCIAS

BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho. Decreto-Lei 5.452, de 1º de maio de 1943. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 07 de dez. 2014.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 5 de outubro de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 26 de set. 2014.

BRASIL. Decreto-Lei 99.684, de 8 de novembro de 1990. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 07 de dez. 2014.

BRASIL. Lei 8.036, de 11 de maio de 1990. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 07 de dez. 2014.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Primeira Turma, ARE 709.212/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 13/11/2014, p. (aguardando publicação no DJe). Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 07 de dez. 2014.

BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Quarta Turma, AIRR-639935-30.2000.5.06.5555, Rel. Min. Guilherme Augusto Caputo Bastos, j. 04/10/2000, p. DEJT 20/10/2000. Disponível em: www.tst.jus.br. Acesso em: 07 dez. 2014.

BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho, Sétima Turma, RR-163100-35.2006.5.15.0049, Rel. Min. Guilherme Augusto Caputo Bastos, j. 20/04/2010, p. DEJT 30/04/2010. Disponível em: www.tst.jus.br. Acesso em: 07 dez. 2014. 

         BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Súmula 206. Tribunal Pleno. Res. 121/2003. DJ 19, 20 e 21.11.2003. Disponível em: www.tst.jus.br. Acesso em: 07 dez. 2014.

         BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Súmula 362. Tribunal Pleno. Res. 121/2003. DJ 19, 20 e 21.11.2003. Disponível em: www.tst.jus.br. Acesso em: 07 dez. 2014.   

sábado, 4 de outubro de 2014

AS IMPLICAÇÕES DA TEORIA DO FINALISMO MITIGADO NA FIXAÇÃO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL NO PROCESSO CIVIL

Min. Paulo de Tarso Sanseverino, relator do AgRg no REsp 1.321.083/PR no STJ.
Ouvindo atualmente: "Julian Bream Plays Dowland & Bach" (1954),
de Julian Bream.
Um dos álbuns mais preciosos da minha discoteca,
obra-prima gravada ainda na juventude pelo
meu violonista favorito (Bream) com repertório de peças
dos meus dois compositores favoritos (Dowland e Bach).


Calcado na teoria da realidade técnica, o ordenamento jurídico brasileiro reconhece, por ficção legal, que as pessoas jurídicas são conjuntos de pessoas ou de bens dotados de personalidade jurídica própria. Assim, faz sentido a sua inclusão no conceito de consumidor, conforme prescreve o art. 2º, caput, do CDC: “Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.    

Mas é preciso observar que os critérios de aferição da pessoa jurídica consumidora não se estabeleceram de forma pacífica. Há forte dissensão doutrinária e jurisprudencial quanto à interpretação do significado da expressão “destinatário final”. Nesse sentido, pelo menos duas teorias disputam a preferência dos intérpretes da legislação consumerista: de um lado, a teoria finalista (ou teoria subjetiva) associa o conceito de consumidor ao do destinatário final econômico, a frisar que somente aquele que utiliza produto ou serviço para fins não profissionais (isto é, fins privados, pessoais, de uso próprio ou de sua família, e não para revenda) pode ser juridicamente considerado consumidor; de outro lado, a teoria maximalista (ou teoria objetiva) associa o conceito de consumidor ao do destinatário final fático, importando considerar consumidor todo aquele que se encontra posicionado na última etapa da cadeia de consumo, de modo que depois do utente não haja mais ninguém a quem se possa transmitir o produto ou serviço adquirido, independentemente da finalidade da aquisição (se profissional ou não).  

Atualmente, a jurisprudência do STJ pacificou a interpretação do art. 2º do CDC à luz da teoria finalista, consoante se depreende deste aresto recente na matéria (grifo meu):

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. UTILIZAÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA COMO INSUMO. AUSÊNCIA DE VULNERABILIDADE. NÃO INCIDÊNCIA DO CDC. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
1.   Esta Corte Superior adota a teoria finalista para a definição do conceito de consumidor, motivo pelo qual não se aplica a legislação consumerista quando o usuário do serviço utiliza a energia elétrica como insumo, como se verifica no caso dos autos.
2.   O que qualifica uma pessoa jurídica como consumidora é aquisição ou utilização de produtos ou serviços em benefício próprio; isto é, para satisfação de suas necessidades pessoais, sem ter o interesse de repassá-los a terceiros, nem empregá-los na geração de outros bens ou serviços. Desse modo, não sendo a empresa destinatária final dos bens adquiridos ou serviços prestados, não está caracterizada a relação de consumo (AgRg no REsp 916.939/MG, Rel. Min. DENISE ARRUDA, DJe 03.12.2008).
3.   Agravo Regimental desprovido.
(STJ, T1 – Primeira Turma, AgRg no REsp 1.331.112/SP, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 21/08/2014, p. DJe 01/09/2014).

Sem embargo do posicionamento jurisprudencial firmado em favor da teoria finalista, o próprio STJ tem cuidado de mitigá-la, abrandá-la, em ordem a impedir que sua aplicação pura pudesse constituir-se em fator de injustiça da decisão. Assim é que o tribunal, uma vez caracterizada a vulnerabilidade da parte no caso concreto, tem-na considerado consumidor, mesmo que não o fosse de acordo com as premissas teóricas da teoria finalista. Portanto, é a vulnerabilidade da pessoa física ou jurídica que a torna consumidora, de conformidade com o que se expôs neste precedente:

CONSUMIDOR. DEFINIÇÃO. ALCANCE. TEORIA FINALISTA. REGRA. MITIGAÇÃO. FINALISMO APROFUNDADO. CONSUMIDOR POR EQUIPARAÇÃO. VULNERABILIDADE. 1. A jurisprudência do STJ se encontra consolidada no sentido de que a determinação da qualidade de consumidor deve, em regra, ser feita mediante aplicação da teoria finalista, que, numa exegese restritiva do art. 2º do CDC, considera destinatário final tão somente o destinatário fático e econômico do bem ou serviço, seja ele pessoa física ou jurídica. 2. Pela teoria finalista, fica excluído da proteção do CDC o consumo intermediário, assim entendido como aquele cujo produto retorna para as cadeias de produção e distribuição, compondo o custo (e, portanto, o preço final) de um novo bem ou serviço. Vale dizer, só pode ser considerado consumidor, para fins de tutela pela Lei nº 8.078/90, aquele que exaure a função econômica do bem ou serviço, excluindo-o de forma definitiva do mercado de consumo. 3. A jurisprudência do STJ, tomando por base o conceito de consumidor por equiparação previsto no art. 29 do CDC, tem evoluído para uma aplicação temperada da teoria finalista frente às pessoas jurídicas, num processo que a doutrina vem denominando finalismo aprofundado, consistente em se admitir que, em determinadas hipóteses, a pessoa jurídica adquirente de um produto ou serviço pode ser equiparada à condição de consumidora, por apresentar frente ao fornecedor alguma vulnerabilidade, que constitui o princípio-motor da política nacional das relações de consumo, premissa expressamente fixada no art. 4º, I, do CDC, que legitima toda a proteção conferida ao consumidor. 4. A doutrina tradicionalmente aponta a existência de três modalidades de vulnerabilidade: técnica (ausência de conhecimento específico acerca do produto ou serviço objeto de consumo), jurídica (falta de conhecimento jurídico, contábil ou econômico e de seus reflexos na relação de consumo) e fática (situações em que a insuficiência econômica, física ou até mesmo psicológica do consumidor o coloca em pé de desigualdade frente ao fornecedor). Mais recentemente, tem se incluído também a vulnerabilidade informacional (dados insuficientes sobre o produto ou serviço capazes de influenciar no processo decisório de compra). 5. A despeito da identificação in abstracto dessas espécies de vulnerabilidade, a casuística poderá apresentar novas formas de vulnerabilidade aptas a atrair a incidência do CDC à relação de consumo. Numa relação interempresarial, para além das hipóteses de vulnerabilidade já consagradas pela doutrina e pela jurisprudência, a relação de dependência de uma das partes frente à outra pode, conforme o caso, caracterizar uma vulnerabilidade legitimadora da aplicação da Lei nº 8.078/90, mitigando os rigores da teoria finalista e autorizando a equiparação da pessoa jurídica compradora à condição de consumidora. 6. Hipótese em que revendedora de veículos reclama indenização por danos materiais derivados de defeito em suas linhas telefônicas, tornando inócuo o investimento em anúncios publicitários, dada a impossibilidade de atender ligações de potenciais clientes. A contratação do serviço de telefonia não caracteriza relação de consumo tutelável pelo CDC, pois o referido serviço compõe a cadeia produtiva da empresa, sendo essencial à consecução do seu negócio. Também não se verifica nenhuma vulnerabilidade apta a equipar a empresa à condição de consumidora frente à prestadora do serviço de telefonia. Ainda assim, mediante aplicação do direito à espécie, nos termos do art. 257 do RISTJ, fica mantida a condenação imposta atítulo de danos materiais, à luz dos arts. 186 e 927 do CC/02 e tendo em vista a conclusão das instâncias ordinárias quanto à existência de culpa da fornecedora pelo defeito apresentado nas linhas telefônicas e a relação direta deste defeito com os prejuízos suportados pela revendedora de veículos. 7. Recurso especial a que se nega provimento.
(STJ, T3 – Terceira Turma, REsp 1.195.642/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 13/11/2012, p. DJe 21/11/2012).

É possível também se invocar a teoria finalista mitigada (ou teoria finalista aprofundada) para autorizar a incidência da lei consumerista àqueles relações em que a parte vulnerável não seja tecnicamente a destinatária final fático e econômico do bem ou do serviço. É o pensamento colhido do julgado seguinte (grifo meu):

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO E NOVAÇÃO DE DÍVIDA. RELAÇÃO DE CONSUMO. TEORIA FINALISTA MITIGADA. INSCRIÇÃO INDEVIDA EM CADASTRO DE INADIMPLENTES. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 535 DO CPC. SÚMULA 7/STJ. DANO MORAL. RAZOABILIDADE.
1.- Tendo o Tribunal de origem fundamentado o posicionamento Adotado com elementos suficientes à resolução da lide, não há que se falar em ofensa ao artigo 535, do CPC.
2.- A jurisprudência desta Corte tem mitigado a teoria finalista para autorizar a incidência do Código de Defesa do Consumidor nas hipóteses em que a parte (pessoa física ou jurídica), embora não seja tecnicamente a destinatária final do produto ou serviço, se apresenta em situação de vulnerabilidade. Precedentes.
3.- A convicção a que chegou o Acórdão acerca do dano e do aval decorreu da análise do conjunto fático-probatório, e o acolhimento da pretensão recursal demandaria o reexame do mencionado suporte, obstando a admissibilidade do Especial os enunciados 5 e 7 da Súmula desta Corte Superior.
4.- A intervenção do STJ, Corte de caráter nacional, destinada a firmar interpretação geral do Direito Federal para todo o país e não para a revisão de questões de interesse individual, no caso de questionamento do valor fixado para o dano moral, somente é admissível quando o valor fixado pelo Tribunal de origem, cumprindo  o duplo grau de jurisdição, se mostre teratológico, por irrisório ou abusivo.
5.- Inocorrência de teratologia no caso concreto, em que foi fixado o valor de indenização em R$ R$ 35.000,00 (trinta e cinco mil reais), devido pelo ora Agravante ao autor, a título de danos Morais decorrentes de inscrição indevida em cadastro de proteção ao crédito.
6.- Agravo Regimental improvido.
(STJ, T3 – Terceira Turma, AgRg no REsp 1.413.889/SC, Rel. Min. Sidnei Beneti, j. 27/03/2014, p. DJe 02/05/2014).

Nessa toada, cumpre sublinhar que a discussão derredor da teoria aplicável à definição do consumidor destinatário final de produto ou serviço não é despicienda. Há várias implicações dela decorrentes, inclusive no campo processual.

Do ponto de vista do processo, a incidência do CDC acarreta alterações na fixação do foro competente para o julgamento da causa. Se se tratar de causa cível comum, ter-se-á a aplicação da regra geral de competência territorial no Processo Civil, a impor a propositura da demanda no foro do domicílio do réu (CPC, art. 94). Em contrapartida, se se tratar de causa consumerista, o foto competente para o ajuizamento da demanda será o do domicílio do autor-consumidor (CDC, art. 101, I).

Eis os dispositivos aplicáveis à espécie:

CPC, art. 94. A ação fundada em direito pessoal e a ação fundada em direito real sobre bens móveis serão propostas, em regra, no foro do domicílio do réu.

CDC, art. 101. Na ação de responsabilidade civil do fornecedor de produtos e serviços, sem prejuízo do disposto nos Capítulos I e II deste título, serão observadas as seguintes normas:

I - a ação pode ser proposta no domicílio do autor;

[...]

Uma boa exemplificação prática da repercussão que a incidência do CDC para fixação do foro competente pode ser encontrada em precedente julgado pela Terceira Turma do STJ (REsp 1.321.083/PR). No caso concreto, uma empresa do ramo imobiliário comprou avião para transportar de seus diretores, funcionários e clientes. No entanto, em face de alegado inadimplemento contratual da fornecedora do veículo de transporte aéreo, a compradora ajuizou ação de resolução do contrato, a pedir a devolução dos valores que antecipara a título de arras confirmatórias da compra da aeronave.

O ponto nevrálgico da discussão levada ao STJ dizia respeito ao foro competente para o julgamento da lide, já que a demanda havia sido proposta na cidade de Curitiba/PR, sede da empresa compradora do avião. Tal propositura evidentemente partia do suposto de que a compradora era pessoa jurídica consumidora, alicerçando a sua escolha de unidade territorial no art. 101, I, do CDC. Diante disso, a empresa vendedora opôs exceção de incompetência, a sustentar que a relação discutida tinha caráter paritário, motivo pelo qual não se poderia falar em relação de consumo. Consequentemente, uma vez afastado o CDC, aplicar-se-ia o CPC, diploma que regula a competência de foro, a impor o ajuizamento da ação na cidade de Belo Horizonte/MG, sede da empresa vendedora.  

Para dirimir tal controvérsia, era necessário inicialmente aferir se a pessoa jurídica compradora podia ser considerada “consumidor”. Dessa maneira, recordando-se a teoria finalista mitigada, é possível chegar à conclusão de que uma pessoa jurídica pode enquadrada como consumidora quando não utiliza os produtos ou serviços do fornecedor como meio (insumo) para confeccionar outros produtos ou serviços a serem oferecidos no mercado de consumo. Por outras palavras, à luz do entendimento jurisprudencial prevalecente, a pessoa jurídica é consumidora quando adquire produto ou serviço como destinatária final, utilizando-o para atender a uma necessidade sua (própria, pessoal, não profissional), e não dos seus clientes.

Tais fundamentos pautaram a avaliação do caso concreto no STJ. Os ministros da Terceira Turma entenderam que o avião havia sido comprado com o propósito de satisfazer uma necessidade própria da empresa (transporte de diretores, funcionários e clientes), que é de todo incompatível com o serviço que ela presta no mercado de consumo. Logo, a aeronave não podia ser considerada insumo na cadeia produtiva do fornecedor do serviço imobiliário, senão como bem móvel adquirido com vistas à satisfação de necessidades próprias, particulares, privadas, pessoais, não profissionais. Daí a conclusão unânime do colegiado no sentido de que é admissível a incidência na relação interempresarial da Lei 8.078/90.

Vejamos como ficou ementado o acórdão:

AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. CIVIL. DIREITO DO CONSUMIDOR. COMPRA DE AERONAVE POR EMPRESA ADMINISTRADORA DE IMÓVEIS. AQUISIÇÃO COMO DESTINATÁRIA FINAL. EXISTÊNCIA DE RELAÇÃO DE CONSUMO.
1. Controvérsia acerca da existência de relação de consumo na aquisição de aeronave por empresa administradora de imóveis.
2. Produto adquirido para atender a uma necessidade própria da pessoa jurídica, não se incorporando ao serviço prestado aos clientes.
3. Existência de relação de consumo, à luz da teoria finalista mitigada. Precedentes.
4. Agravo regimental desprovido.
(STJ, T3 – Terceira Turma, AgRg no REsp 1.321.083/PR, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 09/09/2014, p. DJe 25/09/2014)

A consequência direta do reconhecimento da empresa compradora do avião qual pessoa jurídica consumidora dá-se no plano das normas aplicáveis à fixação da unidade territorial competente para o exercício da jurisdição. Como se trata de relação de consumo, a regra geral de competência territorial insculpida no caput do art. 94 do CPC (foro do domicílio do réu) fica afastada, a privilegiar-se os ditames processuais previstos na lei consumerista em benefício do consumidor. Por conseguinte, é forçoso entender pela aplicação plenamente válida da faculdade estatuída no art. 101, I, do CDC, a salvaguardar a possibilidade (faculdade) de o consumidor-autor propor a ação no foro do seu domicílio, isto é, no domicílio do autor da demanda – que, no caso concreto, era mesmo a cidade de Curitiba/PR, sede da pessoa jurídica que comprou a aeronave.  

REFERÊNCIAS

BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 4 de out. 2014.

BRASIL. Código de Processo Civil. Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 4 de out. 2014.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, T3 – Terceira Turma, REsp 1.195.642/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 13/11/2012, p. DJe 21/11/2012). Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 4 de out. 2014.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, T3 – Terceira Turma, AgRg no REsp 1.413.889/SC, Rel. Min. Sidnei Beneti, j. 27/03/2014, p. DJe 02/05/2014). Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 4 de out. 2014.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, T1 – Primeira Turma, AgRg no REsp 1.331.112/SP, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 21/08/2014, p. DJe 01/09/2014. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 4 de out. 2014.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, T3 – Terceira Turma, AgRg no REsp 1.321.083/PR, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 09/09/2014, p. DJe 25/09/2014. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 4 de out. 2014.