domingo, 27 de abril de 2014

RT Comenta: DIREITO CIVIL - Teoria da posse e usucapião especial rural


 
Prova: Advocacia-Geral da União - Procurador Federal (2013)
Tipo: Objetiva
Banca:
Na seção RT Comenta de hoje, escolhi uma questão muito interessante de Direito Civil para analisar. O tema é novamente a usucapião, pois confesso que gosto muito do estudo dos Direitos Reais, com sua terminologia técnica extremamente intrincada e sedutora. Ademais, como adoro História do Direito, sempre considero o fato histórico de que o Direito das Coisas foi palco de uma das mais impressionantes disputas doutrinárias da História do Direito, a opor dois gênios incontestáveis da ciência jurídica - os juristas alemães Friedrich Carl von Savigny e Rudolf von Ihering.
          Então espero que o leitor me acompanhe nessa jornada fascinante!      

Acerca do processo de desapropriação para a reforma agrária, de títulos da dívida agrária e da usucapião especial rural, julgue os próximos itens.
 
105 Considere a seguinte situação hipotética.
Em agosto de 2013, Pedro e Maria, casados sob o regime de comunhão parcial de bens, propuseram ação de usucapião especial rural, demonstrando que possuem como seu, há pelo menos dez anos, de forma ininterrupta, o imóvel rural X, de cinquenta e cinco hectares, onde residem com os filhos e produzem com o seu trabalho. Em julho de 2013, João propôs demanda na justiça, em que contesta a posse do imóvel X por Pedro e Maria e atesta que tal imóvel integra herança deixada por seu avô paterno.
Nessa situação, a justiça deve indeferir a demanda de João e conceder a Pedro e Maria a propriedade do referido imóvel, bem como o direito de se manterem na posse do terreno rural, haja vista o cumprimento dos requisitos constitucionais.

Ao elevar o direito de propriedade à categoria de direito fundamental (CF, art. 5º, XXII), o legislador constituinte tratou de limitá-lo pela imposição do atendimento à função social da propriedade (CF, art. 5º, XXIII).

Entre os mecanismos criados pelo próprio texto constitucional para assegurar a função social da propriedade encontra-se a usucapião especial rural. Trata-se de uma peculiar situação de aquisição do domínio ante a comprovação da posse prolongada, que ratifica a situação de fato do possuidor (juridicidade da posse ad usucapionem ou posse usucapível), após o decurso de um lapso temporal previsto em lei. No caso da usucapião, a “lei” é expressão de que me valho em seu sentido lato sensu, uma vez que tanto a Lei Fundamental quanto a lei infraconstitucional previram o instituto. In verbis:

Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.

Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.

Art. 1.239. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como sua, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.

Seja pela leitura do art. 191 da Constituição, seja pela do art. 1.239 do Código Civil, a posse necessita preencher alguns requisitos. Esse é um aspecto importante, a merecer destacamento, já que nem toda a situação de fato que vem a se encompridar no tempo pode ser qualificada de posse ad usucapionem – e, assim, justificar a aquisição originária da propriedade. A título de exemplo, temos o caso clássico do caseiro, que não pode ajuizar ação de usucapião do imóvel que administra, uma vez não ser considerado possuidor, senão mero detentor (fâmulo da posse). A esse raciocínio, aplica-se a teoria objetiva da posse, que foi desenvolvida pelo jurista alemão Rudolf von Ihering e adotada expressamente pelo legislador brasileiro no art. 1.196 do CC:

Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.   

Do ponto de vista processual, em casos como o do caseiro, e demais administradores da coisa alheia em geral, eventual propositura de ação de usucapião restaria mal sucedida. O motivo é que o fâmulo não preenche na íntegra as condições da ação. Ele não tem, de ordinário, legitimidade ad causam (não tem poder jurídico para conduzir validamente um processo, pois, em regra, as pessoas só podem ir a juízo, na condição de parte, quando postulam e defendem direito próprio, e não alheio, conforme o art. 6º do CPC) e nem interesse de agir (falta interesse-utilidade ao processo, que não pode propiciar a tutela jurisdicional pretendida pelo litigante, isto é, a aquisição do domínio jurídico pela posse usucapível). Logo, no exemplo do caseiro, o juiz estaria obrigado a proceder à extinção do processo sem resolução do mérito por carência de ação (CPC, art. 267, VI).   

A seguir o mesmo raciocínio, ainda à luz da teoria objetiva de Ihering, a lei civil contemplou outras hipóteses nas quais o poder de fato exercido sobre a coisa está impedido de originar direito possessório próprio. Assim, são meros detentores da coisa:

(a) os praticantes de atos provenientes de mera permissão ou tolerância, pois o proprietário que permite ou tolera age lealmente, portanto, não renuncia à sua posse, motivo pelo qual a posse precária (retida indevidamente) é posse injusta (CC, art. 1.200, a contrario sensu);

(b) os praticantes de atos violentos (o direito não se compadece com a violência, logo, nega ao esbulhador a proteção possessória) ou clandestinos (quem se apossa da coisa alheia às escondidas não goza de proteção possessória);

(c) os que ocupem bens de uso comum do povo (CC, art. 99, I) ou bens de uso especial (CC, art. 99, II), conforme preconiza o art. 100 do códex (“Art. 100. Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar.”).

Essa breve digressão sobre a teoria da posse serve apenas para demonstrar ao leitor que nem toda posse é capaz de garantir ao seu titular a usucapião da coisa. Logo, nem toda posse é ad usucapionem, como nem todo bem é usucapto.

Por esse motivo, para fins didáticos, penso seja conveniente enumerar os requisitos da posse ad usucapionem genérica e, ato contínuo, as especificidades da usucapião rural.

Dessa maneira, a posse ad usucapionem, que permite a aquisição originária da propriedade pela prescrição aquisitiva, deve preencher genericamente os seguintes requisitos:   

1)      posse com animus domini: é a exteriorização da intenção de dono, isto é, de possuir a coisa como se sua fosse, a excluir o proprietário;

2)      posse mansa e pacífica (é a posse inconcussa, incontestada, contra a qual não há oposição);

3)      posse contínua durante determinado tempo (é o elemento temporal, mediante o qual a posse se converte em propriedade, uma vez expirado o prazo legal);

4)      posse justa (é a posse que, a contrario sensu do teor do art. 1.200 do CC, não se apresenta objetivamente viciada pela violência, clandestinidade ou precariedade);

5)      posse de boa-fé (é a posse exercida pelo possuidor que ignora o vício ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa, conforme art. 1.201 do CC);

6)      posse com justo título (interpretando esse conceito jurídico, o enunciado n. 86 da I Jornada de Direito Civil aderiu à interpretação abrangente: “86 – Art. 1.242: A expressão “justo título” contida nos arts. 1.242 e 1.260 do Código Civil abrange todo e qualquer ato jurídico hábil, em tese, a transferir a propriedade, independentemente de registro.”).      

Repare o leitor que fiz uso propositalmente do advérbio “genericamente” para identificar a posse ad usucapionem. E fi-lo em atenção à sistemática dos Direitos Reais no Código Civil, que, nalgumas hipóteses, dispensa ora um ora outro desses requisitos. É o que ocorre, exemplificativamente, com as usucapiões especiais, seja a urbana, pro misero ou pro moradia (CF, art. 183, caput, c/c art. 1.240 do CC c/c art. 9ª da Lei 10.257/01), seja a rural, pro labore (CF, art. 191, caput, c/c art. 1.239 do CC c/c a Lei 6.969/81). Em ambas, o legislador, para efeito de reconhecimento da prescrição aquisitiva do domínio, contenta-se com a posse exercida com animus domini, mansa e pacífica, pelo lapso temporal ex vi legis. Numa palavra, os requisitos da boa-fé e do justo título são prescindíveis.  

Sendo assim, a usucapião especial rural deve preencher, à luz do art. 191 da CF/88, os seguintes requisitos específicos:

1)      posse com animus domini, mansa e pacífica, contínua e duradora, pelo prazo de 5 anos;

2)      posse sobre área de terra, localizada em zona rural, com extensão não superior a 50 ha;

3)      utilização do imóvel para fins de moradia;

4)      utilização produtiva do imóvel (a produtividade é aferida por meio do uso da terra em atividades econômicas que sejam capazes de propiciar a subsistência da pessoa ou da sua família, independentemente de o trabalho ser desenvolvido no campo da agricultura, da pecuária, do extrativismo etc.).

5)      não ser o usucapiente proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

Observe o leitor que o Poder Constituinte dispensou os requisitos da boa-fé e do justo título, que, dessa forma, ficam presumidos iure et de iure (presunção absoluta) na hipótese. Daí a doutrina considerar que, tal qual sucede na usucapião extraordinária (CC, art. 1.238), as usucapiões especiais urbana e rural têm requisito único, isto é, a posse justa, sem vícios, que satisfaz os parâmetros legais.

Agora, após essa exposição teórica inicial, o leitor pode notar que o caso concreto proposto pela banca examinadora apresenta pelo menos dois equívocos. O primeiro, e mais flagrante, está no limite territorial. De fato, o caput do art. 191 da Constituição estipula que o imóvel a ser usucapido não pode ultrapassar o limite de cinquenta hectares. Trata-se de aspecto dos mais relevantes. Prova disso é que, na IV Jornada de Direito Civil, a comissão de juristas ali reunida rejeitou a tese doutrinária que admitia a aquisição originária da propriedade pela via da usucapião especial (rural ou urbana, tanto faz), consagrando tal entendimento no Enunciado nº 313:

313 – Arts. 1.239 e 1.240. Quando a posse ocorre sobre área superior aos limites legais, não é possível a aquisição pela via da usucapião especial, ainda que o pedido restrinja a dimensão do que se quer usucapir.

 
Logo, só a circunstância de a ação proposta pelo casal João e Maria estar lastreada na tentativa de usucapir área de 55 ha já imporia de per si a improcedência do pedido dos autores.

Mas não só isso.

Note o leitor que um terceiro, chamado João, propôs demanda na justiça em julho de 2013, a contestar a posse do imóvel X por Pedro e Maria. Ou seja, à alegada usucapião também faltaria o requisito da posse mansa e pacífica, visto que a mansidão/pacificação da situação de fato dos possuidores foi objeto de oposição judicial pretérita.

Portanto, considerando todos esses argumentos, o item 105 está errado.  

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