quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Notas sobre a decisão do STF quanto à constitucionalidade da requisição, acesso e uso, pelos órgãos da administração tributária, de informações dos contribuintes, à luz do art. 6º da LC 105/2001

Min. Edson Fachin, relator do RE 601.314/SP no STF
Ouvindo atualmente: "Tomaso Antônio Vitali: Chaconne
em Sol Menor para violino e piano",
gravação de Jascha Heifetz remasterizada em 2011.
 

O Direito Constitucional Positivo brasileiro conhece o direito fundamental à intimidade. Sobre ele, estipula que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (CF, art. 5º, X).

Muitas são as possíveis consequências dessa garantia fundamental. Uma delas encontra-se na proteção ao sigilo bancário. Apesar de a Constituição de 1988 não se ter dedicado especificamente ao tratamento do tema, é correto afirmar que, no sistema constitucional vigente no Brasil, a proteção do sigilo bancário é uma decorrência lógica da proteção que o texto supremo assegura à intimidade dos cidadãos, porquanto o que a norma busca é criar, em favor do indivíduo, uma esfera indevassável pelos órgãos de Estado.     

Entretanto, a garantia constitucional da intimidade não é um direito absoluto. Assim, o sigilo bancário submete-se à possibilidade de seu afastamento pela autoridade estatal, desde que a sua relativização seja compatível com o princípio da proporcionalidade e com a necessidade efetiva da medida de constrição.

Forte nessas premissas, o legislador editou a Lei Complementar 105/2001. A ementa desse diploma revela que seu objetivo é “dispor sobre o sigilo das operações financeiras”, razão pela qual, de ordinário, em favor da preservação da intimidade dos cidadãos, estabelece-se que “As instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados” (LC 105/01, art. 1º). Apesar disso, considerando tratar-se de uma proteção jurídica relativa, a lei também estipula situações que não constituem violação de sigilo (art. 1º, § 3º) e que autorizam a própria quebra do sigilo bancário, quando tal medida constritiva revelar-se necessária para apuração de ocorrência de qualquer ilícito, em qualquer fase do inquérito ou do processo judicial (art. 1º, § 4º).

Sucede que a LC 105/01, no seu art. 6º, trouxe uma norma que imediatamente suscitou grande polêmica. Vejamo-la in verbis:     

Art. 6º As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.   

Parágrafo único. O resultado dos exames, as informações e os documentos a que se refere este artigo serão conservados em sigilo, observada a legislação tributária.

A polêmica reside na autorização que a norma confere aos órgãos da Administração Pública tributária para terem acesso a dados dos contribuintes - em princípio, protegidas pela garantia do sigilo bancário -, independentemente da autorização judicial. Diante disso, surgiu o questionamento quanto à constitucionalidade dessa regra infraconstitucional, uma vez que, à luz da garantia insculpida no art. 5º, XII (“ é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;”), somente o Poder Judiciário poderia excepcionar a regra, a autorizar a sua quebra em desfavor do indivíduo. Logo, a exceção (quebra de sigilo bancário) submeter-se-ia à reserva de jurisdição.

Nesse contexto, intensa disputa doutrinária e jurisprudencial derredor da possibilidade de os órgãos do Fisco acessarem dados dos contribuintes sem precisarem de autorização judicial. A controvérsia então culminou com o julgamento do RE 389.808/PR, quando o Supremo Tribunal Federal entendeu que o disposto no art. 6º da LC 105/2001 seria incompatível com a Constituição de 1988. Eis a ementa do precedente:

SIGILO DE DADOS – AFASTAMENTO. Conforme disposto no inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal, a regra é a privacidade quanto à correspondência, às comunicações telegráficas, aos dados e às comunicações, ficando a exceção – a quebra do sigilo – submetida ao crivo de órgão equidistante – o Judiciário – e, mesmo assim, para efeito de investigação criminal ou instrução processual penal. SIGILO DE DADOS BANCÁRIOS – RECEITA FEDERAL. Conflita com a Carta da República norma legal atribuindo à Receita Federal – parte na relação jurídico-tributária – o afastamento do sigilo de dados relativos ao contribuinte. (STF, Pleno, RE 389.808/PR, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 15/12/2010, p. DJe 10/05/2011).  

 Dessa maneira, em uma análise inicial da matéria por ocasião do julgamento do RE RE 389.808/PR, o STF adotou a posição mais favorável ao contribuinte, isto é, reconheceu que a quebra do sigilo bancário, disciplinada pela LC 105/2001, só poderia ser efetivada mediante prévia autorização judicial. Logo, seria inconstitucional a quebra de sigilo operada na esfera administrativa sem observância da reserva de jurisdição.

Todavia, em que pese esse entendimento inicial, a questão não resultou pacificada na Corte Suprema brasileira. Prova disso é que o Plenário do STF, ainda em outubro de 2009, nos autos do RE 601.314/SP, reconheceu a existência de repercussão geral da discussão acerca do fornecimento de informações sobre movimentações financeiras ao Fisco sem autorização judicial, nos termos do art. 6º da Lei Complementar nº 105 /2001. Paralelamente, quatro ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs 2390, 2386, 2397 e 2859) também impugnavam o mesmo dispositivo, acusando-o de inconstitucional.  

Pois bem. Na sessão plenária do dia 24 de fevereiro de 2016, o STF finalmente julgou o RE 601.314/SP, bem como as ADIs apensadas, ocasião em que a Suprema Corte, por maioria de 9 votos a 2, chancelou o entendimento de que os dispositivos da LC 105/01, que autorizam os órgãos da Administração Tributária a terem acesso aos dados bancários dos contribuintes, independentemente de autorização judicial prévia, são constitucionais. Para o STF, o art. 6º da LC 105/01 não configura quebra de sigilo bancário, mas sim mera transferência de informações sigilosas da órbita bancária para a órbita fiscal. Logo, como simples transferência de dados do banco para o Fisco, não há que se falar em quebra de sigilo bancário do contribuinte, motivo pelo qual fica dispensada a reserva de jurisdição, para autorizar esse tipo de procedimento invasivo.

Nesses precedentes julgados em conjunto, o STF enfatizou que Estados e Municípios, a fim de aplicarem o art. 6º da LC 105/2001 nos seus órgãos de administração tributária respectivos, devem criar um regulamento – nos moldes do Decreto 3.724/2001, editado pela União - que firme a necessidade da instauração de processo administrativo com o fim de obtenção das informações bancárias dos contribuintes. Nesse propósito, é preciso que adotem medidas de precaução, tais como o desenvolvimento de sistemas certificados de segurança e registro de acesso do agente público. O objetivo dessas medidas precautórias é evitar a manipulação indevida dos dados fornecidos pelos bancos, o que poderia resultar no desvio da sua finalidade. Além disso, é preciso também que o regulamento dos órgãos de Estados e Municípios assegure ao contribuinte a prévia notificação de abertura de processo, bem como o direito de ter acesso amplo aos autos, inclusive com a possibilidade de obtenção de cópias.

Vejamos a seguir uma síntese da posição adotada pela Suprema Corte nesses precedentes, tal como explicitada pelo Min. Dias Toffoli, relator das ADIs no STF:

Os estados e municípios somente poderão obter as informações previstas no artigo 6º da LC 105/2001, uma vez regulamentada a matéria, de forma análoga ao Decreto Federal 3.724/2001, tal regulamentação deve conter as seguintes garantias: pertinência temática entre a obtenção das informações bancárias e o tributo objeto de cobrança no procedimento administrativo instaurado; a prévia notificação do contribuinte quanto a instauração do processo e a todos os demais atos; sujeição do pedido de acesso a um superior hierárquico; existência de sistemas eletrônicos de segurança que sejam certificados e com registro de acesso; estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de desvios.         

Dessa maneira, evidencia-se que o STF alterou, de maneira radical, seu posicionamento anterior, esposado nos autos do RE 389.808/PR, quando a Corte julgou inconstitucional o art. 6º da LC 105/01. A partir de agora, com o julgamento conjunto do RE 601.314/SP e das ADIs 2390, 2386, 2397 e 2859, o entendimento é diametralmente oposto: o art. 6º da LC 105/01 é perfeitamente constitucional, de tal arte que as autoridades e os agentes fiscais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios poderão ter acesso a dados dos contribuintes, fornecidos pelos bancos, independentemente de prévia autorização judicial, visto que a mera transferência de informações ao Fisco não se submete ao postulado da reserva de jurisdição.  

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