quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

RT COMENTA: PROCESSO CIVIL - Alienação da coisa ou do direito litigioso



1 – Questão do leitor:

Se, após a contestação, o réu, percebendo que será vencido no processo, decide vender a terceiro o veículo automotor cuja titularidade discute com o autor, os efeitos da sentença que vier a ser proferida alcançarão o terceiro adquirente?

Na sistemática do CPC/2015, o art. 336 do código impõe ao réu o ônus processual de apresentar toda a matéria de defesa na contestação, sob pena de operar-se a preclusão. Trata-se da chamada regra da eventualidade ou da concentração da defesa. Vejamos o dispositivo:

Art. 336.  Incumbe ao réu alegar, na contestação, toda a matéria de defesa, expondo as razões de fato e de direito com que impugna o pedido do autor e especificando as provas que pretende produzir.

A regra da eventualidade decorre da necessidade de estabilização da demanda. Diz-se “estável” a demanda que atinge um estágio processual que não mais permite a inclusão de alegações novas. A intenção desse mecanismo é clara: evitar a insegurança, a garantir um mínimo de previsibilidade quanto aos elementos fundamentais da demanda suscetível de apreciação pelo Poder Judiciário.

Apesar disso, o próprio CPC excepciona a regra da concentração de toda a matéria defensiva na contestação, uma vez que autoriza que determinadas defesas possam vir a ser alegadas após a contestação. É o que se verifica da leitura do art. 342 do CPC:

Art. 342.  Depois da contestação, só é lícito ao réu deduzir novas alegações quando:

I - relativas a direito ou a fato superveniente;

II - competir ao juiz conhecer delas de ofício;

III - por expressa autorização legal, puderem ser formuladas em qualquer tempo e grau de jurisdição.

A flexibilização da regra da eventualidade, cometida pelo próprio legislador no art. 342, presta-se a exemplificar que, não obstante desejável, a estabilização da demanda não é um postulado normativo absoluto. Com efeito, mesmo a eficácia preclusiva da regra da eventualidade comporta alteração.     

Esse mesmo raciocínio, que flexibiliza a regra da eventualidade - e, consequentemente, a estabilização da demanda -, vale para a alienação da coisa ou do direito litigioso. Isso porque o sistema da estabilização da demanda não poderia bloquear o tráfico jurídico. Caso contrário, todo bem ou direito que tivesse sua titularidade discutida em juízo estaria, automaticamente, fora do comércio jurídico, o que engessaria interesses econômicos legítimos (alienação de bens e/ou direitos) das partes ante a simples litigiosidade deflagrada pela litispendência, a partir da propositura da ação (para o autor) e da citação (para o réu), conforme prevê o art. 312 c/c art. 240 do CPC/2015.

Assim, o sistema de estabilização da demanda do Código de Processo Civil brasileiro não impede a possibilidade de a parte alienar a coisa ou o direito litigioso, que é o bem da vida submetido à litispendência, isto é, à disputa nos autos de um processo em curso.    

A esse respeito, vejamos o art. 109 do CPC:

Art. 109.  A alienação da coisa ou do direito litigioso por ato entre vivos, a título particular, não altera a legitimidade das partes.

§ 1º O adquirente ou cessionário não poderá ingressar em juízo, sucedendo o alienante ou cedente, sem que o consinta a parte contrária.

§ 2º O adquirente ou cessionário poderá intervir no processo como assistente litisconsorcial do alienante ou cedente.

§ 3º Estendem-se os efeitos da sentença proferida entre as partes originárias ao adquirente ou cessionário.

O art. 109 do CPC pode ensejar muitas consequências processuais relevantes. Cito algumas delas:

a)      perpetuação da legitimidade ad causam das partes, porém com mudança de tipo (como na hipótese de substituição processual, caso em que o alienante/cedente passa a substituir, como legitimado extraordinário, o adquirente/cessionário);

b)      possibilidade de sucessão processual (caso em que o adquirente/cessionário entra como parte no lugar do alienante/cedente);

c)      formação de assistência litisconsorcial (quando o adquirente/cessionário intervém no processo para auxiliar o alienante/cedente, após a recusa da parte contrária em consentir com a sucessão processual no polo passivo da demanda);

d)      formação de assistência simples (quando, após a parte contrária consentir com a sucessão processual, o alienante/cedente decide permanecer no processo, para auxiliar o adquirente/cessionário a vencer a demanda);

e)     extensão da eficácia da coisa julgada a terceiros.      

É precisamente essa última consequência da alienação da coisa ou do direito litigioso que constitui a chave para a resolução da questão.

Nesse sentido, cabe ponderar que, de ordinário, a eficácia subjetiva da coisa julgada é limita, adstrita às partes do processo, nos moldes do art. 506 do CPC:

Art. 506.  A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros.

Porém, quando ocorre a alienação da coisa ou do direito litigioso, o código permite – em caráter excepcional - que a coisa julgada atinja o terceiro adquirente/cessionário (CPC, art. 109, § 3º).

A razão dessa norma encontra-se na circunstância de o réu original da demanda (convertido em alienante/cedente) permanecer no processo na condição de legitimado extraordinário (substituto processual) do adquirente/cessionário. Logo, em demandas nas quais haja a participação de substituto processual num dos polos, o sistema do código autoriza a que a eficácia subjetiva da coisa julgada estenda-se excepcionalmente, para atingir a esfera jurídica do terceiro substituído.    

Portanto, havendo litispendência, é lícito ao réu promover a alienação do direito ou da coisa litigiosa (um veículo automotor, p. ex.). Contudo, ao fazê-lo, o terceiro adquirente desse veículo ficará submetido aos efeitos da sentença (coisa julgada) proferida entre as partes originárias, de conformidade com o teor do § 3º do art. 109 do CPC.  

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