sexta-feira, 29 de julho de 2016

RT COMENTA: PROCESSO PENAL - Provas


► Pergunta do leitor:
Professor, é possível a caracterização do crime de estupro sem a realização do exame de corpo de delito da vítima?

A interrogante do leitor está a encerrar um tema que, no passado, foi polemista nos tribunais brasileiros. O exame de corpo de delito, como é cediço, corresponde à investigação de peritos, especializados em conhecimento de caráter técnico-científico, que analisam a existência de vestígios materiais deixados pela prática delituosa. O conjunto desses vestígios constitui o “corpo do delito” propriamente dito e sua importância, no campo processual, está relacionada com a comprovação da autoria e da materialidade da infração penal.

Na sistemática do Código de Processo Penal brasileiro, o exame de corpo de delito está a funcionar como meio de prova que, de ordinário, reputa-se indispensável. É o que prescreve o art. 158 do CPP:

Art. 158.  Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado.

Nesse contexto, a controvérsia instalava-se pela corrente doutrinária que advogava a tese da imprescindibilidade do exame de corpo de delito da vítima nos crimes sexuais, a aplicar a regra do art. 158 do CPP sem qualquer ressalva. Acorde com esse pensamento, a tipificação do crime de estupro (CP, art. 213), por exemplo, não se completaria validamente sem a realização do exame de corpo de delito na vítima, haja vista tratar-se de meio de prova indispensável à comprovação da autoria e da materialidade delitivas. Em consequência disso, caso não se tivesse, por qualquer motivo, realizado a análise dos vestígios materiais deixados pelo estupro, a ausência de laudo pericial conclusivo recomendaria de per si a absolvição do réu.  

Atualmente, todavia, essa tese defensiva já se encontra superada.
 
Com efeito, no repositório de jurisprudência criminal do STF e do STJ, o entendimento prevalecente é no sentido de que, em se tratando de crimes contra a dignidade sexual, é preciso reconhecer que o seu modus operandi típico é diferenciado pela sua clandestinidade, a acarretar especial dificuldade na colheita de vestígios materiais (às vezes, sequer sobram vestígios sensíveis do delito). Com isso, os tribunais devem atribuir à palavra da vítima um valor probatório diferenciado, uma carga probante mais acentuada no Processo Penal.
 
Exemplificativamente, no crime de estupro, o julgador deve considerar que a clandestinidade com que se opera ordinariamente a sua consumação acentua a dificuldade na verificação de testemunhas ou de vestígios materiais, em tudo a contribuir para que o juízo de tipicidade prescinda de laudo pericial. Desse modo, a regra do art. 158 do CPP deve ceder diante das circunstâncias peculiarizadas que cercam a perpetração do estupro – quase sempre praticado pelo agente criminoso de maneira furtiva, às escondidas.    

A fim de demonstrar o posicionamento do STF e do STJ nessa matéria, separei para o leitor os acórdãos a seguir (grifos meus):

ESTUPRO - EXAME DE CORPO DE DELITO - PROVA - DEPOIMENTO DA VÍTIMA. Sendo a vítima mulher que não era virgem, casada e mãe de filhos, dispensável e o exame do corpo de delito. A existência de sêmen na vagina não e essencial a configuração do delito, no que pressupõe o constrangimento de mulher a conjunção carnal, mediante violência. A prova testemunhal e de difícil desenvolvimento, por tratar-se de evento raramente presenciado. Potencializa-se o depoimento da vítima, não cabendo perquirir, para efeito desimplificação, a conduta cotidiana. O fato de tratar-se de meretriz nada representa, mormente quando as pessoas ouvidas deixaram esclarecido que o agente, ameacando-a com arma de fogo, obrigou-a a dirigir-se, despida, a determinado comodo, enquanto os demais participes efetuavam o roubo.
(STF, Segunda Turma, HC 68704/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 10/09/1991, p. DJ 04/10/1991).    
 
HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. ESTUPRO. ATOS LIBIDINOSOS DIVERSOS DA CONJUNÇÃO CARNAL. SEXO ORAL. EXAME PERICIAL. DESNECESSIDADE. CRIME QUE NÃO DEIXA VESTÍGIOS. PALAVRAS DAS VÍTIMAS. VALIDADE. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO.
1. O Supremo Tribunal Federal, por sua Primeira Turma, e a Terceira Seção deste Superior Tribunal de Justiça, diante da utilização crescente e sucessiva do habeas corpus, passaram a restringir a sua admissibilidade quando o ato ilegal for passível de impugnação pela via recursal própria, sem olvidar a possibilidade de concessão da ordem, de ofício, nos casos de flagrante ilegalidade. 2. Nos termos do artigo 158 do Código de Processo Penal, "quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado".
3. Consistindo o ato sexual na prática de sexo oral nas ofendidas e no mesmo contexto em relação ao paciente, e, constatado não ter a prática deixado vestígios materiais, desnecessária a determinação de exame pericial, diante de sua irrelevância para verificação da materialidade delitiva.
4. "A jurisprudência pátria é assente no sentido de que, nos delitos
de natureza sexual, por frequentemente não deixarem vestígios, a palavra da vítima tem valor probante diferenciado" (REsp. 1.571.008/PE, Rel. Min. RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, Dje 23/2/2016).
5. Habeas Corpus não conhecido.
(STJ, Quinta Turma, HC 301380/SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 14/06/2016, p. DJe 21/06/2016).    
 
AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PENAL. ESTUPRO. PALAVRA DA VÍTIMA. VALOR PROBANTE. ACÓRDÃO A QUO EM CONSONÂNCIA COM A JURISPRUDÊNCIA DESTE TRIBUNAL. MATÉRIA FÁTICO PROBATÓRIA. SÚMULAS 7 E 83/STJ.
1. A ausência de laudo pericial conclusivo não afasta a caracterização de estupro, porquanto a palavra da vítima tem validade probante, em particular nessa forma clandestina de delito, por meio do qual não se verificam, com facilidade, testemunhas ou vestígios.
2. O decisum exarado pelo Tribunal de origem bem assim os argumentos da insurgência em exame firmaram-se em matéria fático-probatória, logo, para se aferir a relevância do laudo referente ao corpo de delito ou contraditar o consistente depoimento da vítima, ter-se-ia de reexaminar o acervo de provas dos autos, o que é incabível em tema de recurso especial, a teor da Súmula 7/STJ.
3. A tese esposada pelo Tribunal local consolidou-se em reiterados julgados da Sexta Turma deste Tribunal - Súmula 83/STJ.
4. Na via especial, o Superior Tribunal de Justiça não é sucedâneo de instâncias ordinárias, sobretudo quando envolvida, para a resolução da controvérsia (absolvição do agravante acerca da imputação de estupro, nos termos do art. 386 do CPP), a apreciação do acervo de provas dos autos, o que é incabível em tema de recurso especial, a teor da Súmula 7/STJ.
5. O agravo regimental não merece prosperar, porquanto as razões reunidas na insurgência são incapazes de infirmar o entendimento assentado na decisão agravada.
6. Agravo regimental improvido.
(STJ, Quinta Turma, AgRg no AREsp 160961/PI, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 26/06/2012, p. DJe 06/08/2012).    
 
Em suma, é perfeitamente possível a caracterização do crime de estupro sem a realização do exame de corpo de delito da vítima.
 

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